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O nascimento da “ninguendade”

16/09/2019 Cristian Góes Raízes Culturais

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Reprodução de mestiços mamelucos capturando índios - Pintura de Jean Baptiste Debret (1834).  (Fonte: Domínio Público - Acervo Museu de Arte de São Paulo).

 

No último texto desta séria sobre nossas raízes identitárias mais profundas, vimos como foi fundamental para os interesses mercantis europeus o conluio entre Estado e Igreja. Este consórcio garantiu uma espécie de escravização indígena mais amansada. Pela cruz, implantou-se uma pedagogia da inversão, em que os nativos desenvolviam uma consciência de impureza que precisa ser limpa pelo trabalho escravo e a total submissão aos brancos invasores. Aqueles índios que resistiam a essa violência, eram assassinados aos milhões nas “guerras santas e justas”. Uma outra extrema violência dos invasores contra os donos das terras foi o estupro das índias, o que faz nascer a ideia de miscigenação, item fundamental em nossa trajetória identitária. Vejamos.

A grande maioria dos europeus que chegou no Brasil era homem. Lembra-nos Ribeiro (1995, p. 89) que “os recém-chegados acasalaram-se com as índias, tomando, como era o uso da terra, tantas quanto pudessem”. Voltemos ao que escreveu Pero Vaz de Caminhas ao rei em carta de 1500, sobre as índias: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”. Não tardou e em poucos meses da chegada dos civilizados cristão europeus, há relatos de estupros coletivos, constituição de haréns, aprisionamento e venda de lotes de índias como escravas sexuais. 

Um dos frutos destas relações de extrema violência sexual é o nascimento dos mamelucos ou brasilíndios. Estes seres humanos nascidos dos estupros dos europeus contra as índias vão sofrer uma dupla rejeição identitária. Por um lado, eles não serão reconhecidos como índios, como naturais das “nações” dos nativos. Por outro lado, eles também não vão ser aceitos como brancos, como colonizadores, como civilizados em razão de serem filhos impuros dessa terra, nascidos de mulheres selvagens, sem alma. Ou seja, como muito bem diz Ribeiro (1995, p. 109): “O mameluco caía numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro”. Esta constatação é extremamente significativa para se pensar na constituição identitária do povo brasileiro.

Esta “ninguendade” produzida na História do Brasil é a face mais visível da invisibilização do Outro. Além disso, a ideia de miscigenação que foi utilizada no século XX, e com rastros muito vivos hoje, como uma forma de tentar apagar a ideia de raça no Brasil, o que também é uma ação nítida de invisibilização.

 

As primeiras milícias a serviço das metrópoles

Muitos dos mamelucos brasilíndios, rejeitados pelas nações indígenas e pelos invasores europeus vão ser “acolhidos” nos aldeamentos, ou seja, nas missões religiosas que amansavam os índios para a escravização. Por meio da intensiva catequese, estes mestiços logo aprendem a lógica das diferenças entre o ser humano e o animal, entre o civilizado e o primitivo, entre o superior e o inferior. Ora, com quem vão se identificar os mestiços? Até como forma de sobrevivência, eles, sem demora, passam as ser fortes aliados dos “conquistadores”, sentindo-se civilizados, superiores, humanos diante dos índios, de suas mães. 

Aproveitando-se desta pedagogia que os afastavam dos seus parentes índios e buscando estabelecer um forte controle sobre essa massa de mestiços que crescia, os invasores europeus vão transformar os mamelucos, os brasilíndios, em agentes civilizadores. Os mestiços, fruto dos estupros de suas mães índias, vão compor nossas primeiras milícias, as “bandeiras”, verdadeiros esquadrões armados para a captura de índios e, na maioria dos casos, de extermínio dos nativos seus parentes. 

O que pretendiam os mestiços ao prestar favores aos seus pais homens, os europeus e brancos? O reconhecimento como colonizadores, como homens brancos da civilização, sem qualquer ligação com suas mães e parentes índios. Para isso, esmeravam-se na extrema violência que aprenderam com seus pais. Ribeiro (1995, p. 53) conta-nos que um português que comandava uma destas bandeiras formadas por mamelucos enviou uma carta ao rei de Portugal, em 1649, dizendo que “essa gente” não ia ao mato para cativar os índios, mas ia “adquirir o tapuia gentio-barbo e comedor de carne humana, para o reduzir para o conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade”. 

Os serviços dos mestiços se estenderam também à captura, escravização e mortes dos negros africanos escravizados no Brasil. Os brasilíndios seriam visíveis para os europeus se permanecessem disciplinados e fiéis prestadores de serviços ao Estado e ao capital. Caso contrário, eram jogados na invisibilidade, na sua “ninguendade”.

 

Traços eurocêntricos ao tratar dos mestiços 

Não podemos deixar de registrar que autores na literatura nacional, inclusive alguns que utilizamos nestes textos, apesar de análises críticas sobre a formação histórica do Brasil, tomaram para si, em algum momento, o ângulo eurocêntrico de abordagem sobre a constituição de nossas identidade. 

Em sua obra O povo brasileiro, por exemplo, Darcy Ribeiro (1995) muitas vezes trata a invasão europeia como uma “aventura”, os massacres contra os índios como uma “guerra” e utiliza uma escala humana evolutiva de base europeia, fixando os civilizados e os primitivos. Ribeiro (1995, p. 144) chega a propor que os etnocídios contra os índios também se deram pelo “fracasso de suas próprias tentativas de encontrar um lugar e um papel no mundo dos ‘brancos’”. Ou seja, assume uma posição que parece alinhada à ideologia missionária, à pedagogia inversa e à consciência da impureza das quais, muito modestamente, discordamos.

Também Boris Fausto (2006, p. 49) trata da chegada dos portugueses como resultado do gosto pela “grande aventura”. Argumenta que um dos fatores para o “não sucesso” do “trabalho compulsório” dos índios, ou seja, escravizado foi a “incompatibilidade com o trabalho intensivo”. 

Esta também é a linha de raciocínio de Prado Júnior (2006), que sugere uma ampla colaboração indígena à invasão em troca de pequenos presentes, como se aprende nos livros didáticos. Prado Júnior (2006, p. 36) afirma que “além da resistência que ofereceu ao trabalho, o índio se mostrou mau trabalhador, de pouca resistência física e eficiência mínima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em grande escala”. A explicação central de Prado Júnior (2006, p. 36) para esta “incapacidade” parece mais estarrecedora: “o índio brasileiro, saindo de uma civilização muito primitiva, não podia adaptar-se com a necessária rapidez ao sistema e padrões de uma cultura tão superior à sua, como era aquela que lhe traziam os brancos”.

 

Reflexos na construção das identidades no Brasil

Estas concepções com traços eurocêntricos e de colonialidade foram influenciadas e influenciam autores que colaboram na definição da “identidade do brasileiro”, tendo raízes justamente no sistema colonial. Chauí (2013) lembra dois dos primeiros trabalhos científicos do Brasil sobre o tema: as obras O caráter nacional e as origens do povo brasileiro, de 1881, e a História da literatura brasileira, de 1888, ambas de Silvio Romero. Nelas, conta Chauí (2013, p. 48), afirma-se que o brasileiro é “uma sub-raça mestiça e crioula, nascida da fusão de duas raças inferiores, o índio e o negro, e uma superior, a branca ou ariana”. 

Em 1838 foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e realizado um concurso para saber como deveria ser escrita a “História do Brasil”. Quem ganhou esta disputa? O naturalista alemão Von Martius. Ele reconheceu a existência das três raças (índia, branca e negra), no entanto, esclarece Chauí (2013, p. 50), defendia que era preciso dar “predominância ao português, conquistador e senhor que assegurou o território e imprimiu suas marcas morais ao Brasil”. Existe aí um nítido apagamento de índios, negros e mestiços.

Voltemos à dizimação física, étnica e simbólica do índio. Só em meados do século XIX, o índio volta à cena como uma emergência identitária de parte da elite brasileira em disputa política com portugueses. Apaga-se do índio a condição de escravo e impõe-se uma versão romântica de “guerreiro”, “colaborador da civilização”, “forte e belo”. Essa campanha foi tão incisiva que brasileiros chegaram a trocar de sobrenome, deixando os Alves ou Teixeiras portugueses, e se tornando Índio do Brasil e Tamoio, por exemplo. 

Todavia, aqueles que assumiam estes nomes indígenas, revela Alberto da Costa e Silva (2011, p. 72), “se esmeravam em comportar-se como se estivessem na Europa. O Brasil era a única monarquia do continente americano, e sua corte e seu parlamento não se apartavam dos moldes europeus”. Aqui retomamos Renan (2006) e o “esquecimento” do elemento chave na constituição da nação. A intelligentsia (intelectuais orgânicos) nacional brasileira, inoculada pelo eurocentrismo, tenta fazer apagar e esquecer a barbárie civilizatória contra os donos das terras, de forma que o mito do paraíso terrestre, de uma “terra abençoada por Deus” não fosse contaminado pelo oceano do sangue indígena.

Esse reaparecimento pontual do índio também foi retomado para se contrapor aos negros, para estabelecer mais nitidamente o Outro no negro e no mestiço que cresciam em todo país. O índio é “lembrado” para tentar reduzir as influências africanas nas disputas pela “identitária brasileira”. Não é sem propósito que a miscigenação entre brancos e índios foi elevada ao patamar até de desejável, em rigorosa oposição à mistura entre brancos e negros e, principalmente, de negros com índios. Anota Fausto (2006, p. 68) que “o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de capitão-mor a um índio, porque ‘se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando seu sangue com esta aliança’”. 

 

Outro visível e invisível

Em resumo, a questão indígena e a construção das identidades no Brasil têm inúmeras vertentes, mas o que nos interessa é evidenciar que parte dela passa por um regime de visibilização que põe em maior evidência um Outro como o selvagem, o inumano, mesmo quando ainda era invisível e imaginado por meio das narrativas fantásticas que corriam na Europa antes da “descoberta” do Brasil. A partir dos contatos aqui, este Outro se confirmava como uma verdade identitária na ótica europeia. Entretanto, eram acrescentadas, a partir da resistência dos donos das terras à escravização, qualificações como violentos e preguiçosos, ampliando, assim, seu extermínio. O sentido proposto de visibilização deste Outro era apagá-lo, deixá-lo invisível.

Vimos que o processo de invisibilização do Outro no Brasil ocorria não só por meio de genocídios, mas também nos aldeamentos, por uma catequese que objetivava torná-lo dócil e resignado diante das violências que recebia. Lá, também era destituído de sua cultura e da possibilidade de narrar sobre si mesmo, isto é, tornava-se invisível. A invisibilização também se estendia ao fruto deste primeiro processo de miscigenação, os mamelucos, ou brasilíndios, os mestiços, jogados na “ninguendade”. Esse nosso primeiro movimento de construção de uma “identidade brasileira” até buscava sair desta condição, seja pelo esforço para agradar os exploradores com a prestação de serviços de captura e extermínio dos índios, seja através do processo imitativo dos europeus, porém os mamelucos jamais tiveram o reconhecimento identitário como civilizados.

Além dos nativos e dos brasilíndios, este processo de construção das identidades no Brasil passa, obrigatoriamente, pela também violenta escravização de homens, mulheres e crianças arrancados da África. Em certa medida, grande parte da lógica usada contra os índios era aplicada aos africanos, porém, contra estes últimos emergiu a visibilização de um sistema muito mais racista e cruel, buscando fixar raízes profundas nas relações sociais e identitárias no Brasil, também muito vivas ainda hoje. 

No próximo texto desta série, passaremos a olhar a inserção histórica do negro no nosso percurso identitário. Até lá.

 

 

REFERÊNCIAS

Chauí, M. (2013). Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. S. Paulo: Perseu Abramo.

Costa e Silva, A. da. (2011). População e sociedade. In: Costa e Silva, A. da. (Coord.) Crise Colonial e Independência 1808-1830. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 35-74.

Fausto, B. (2006). História do Brasil. 12ª ed. São Paulo: Edusp.

Prado Júnior, C. (2006). História econômica do Brasil. 47ª reimpressão. S. Paulo: Brasiliense.

Renan, E. (2006). O que é uma nação? 1882. Revista Aulas: Unicamp, 21p.

Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras. 

 

 

A SEQUÊNCIA DOS TEXTOS SOBRE ESSSA TEMÁTICA: 

1 - A fabulação do Outro: herança colonial e a construção das identidades no Brasil.

2 - As identidades e a ideia do Outro: da separação imaginária aos muros reais.

3 - A trajetória manipulada das identidades: da imagem deformada ao controle do Outro

4 - As fantasias da nação e da pátria: ou das formas concretas de nos separar.

5 - A invasão do Novo Mundo: o projeto mercantil-religioso de abuso e apagamento do Outro.

6 - Racismo, a marca visível de colonialidade: uma discussão identitária sobre as raízes do Brasil.

7 - E o paraíso já tinha dono! A partida e a chegada ao Novo Mundo na construção das identidades. 

8 - O sangue indígena banhou o Novo Mundo: a extrema violência é uma de nossas marcas identitárias. 

9 - O amansamento pela cruz: como a pedagogia da inversão é decisiva para as identidades do Brasil. 

 

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Cristian Góes

Jornalista. Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado sanduíche na Universidade do Minho, em Portugal. É mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Gestão Pública (FGV) e em Comunicação da Gestão de Crise (Gama Filho). cristiangoesdf@gmail.com