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O PÓS-CINEMA NOVO

23/03/2021 Eveline de Abreu Cinema e Teatro

Podem me chamar de Cinema de Invenção, de Cinema Marginal ou ainda de Údigrudi, tanto faz, eu atendo!

Glauber Rocha – de novo, ele! – redigiu um manifesto a respeito do que sobreviria ao Cinema Novo, no qual registrou seu contentamento de, na cena mundial cinematográfica, ter havido uma recepção da crítica quanto à intenção cinemanovista de mostrar a cara do Brasil, com suas efervescências ideológicas tanto quanto artísticas, e que nos caberia a determinação de não o deixar cair no estigma de cinema subdesenvolvido.

Entra na cena, em 1969, a Empresa Brasileira de Filmes S.A. – a Embrafilme – para dar uma incrementada na cinematografia nacional e terminou por centralizar a produção nacional. A companhia chapa-branca passou a incentivar a produção e distribuição dos mais variados estilos, como fantasia e épicos dispendiosos. Mas, ao que tudo indica, passava um tanto ao largo do ideário cinemanovista. Porém não há como negar que a Embrafilme tenha sido o resultado líquido, certo e imediato da obstinada peleja da turma do Cinema Novo.

Bastou, no entanto, Fernando Collor de Mello se tornar presidente da República para, em 1990, desmontar o Conselho Nacional de Cinema (Concine), a Embrafilme, a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), o Ministério da Cultura, a regulamentação do mercado, as leis de incentivo, além das instituições responsáveis pelas estatísticas sobre a atividade do cinema no país, com consequências obviamente nefastas para a classe. 

Itamar Franco, seu sucessor, lançou uma boia de salvação, com a instituição do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, em 1992, e dias melhores vieram – parodiando, quem sabe, Dias Melhores Virão, de 1989, filme dirigido por Cacá Diegues.

 

CINEMA DE INVENÇÃO, CINEMA MARGINAL, ÚDIGRUDI

De 1968 a 1970, uma nova leva de cineastas reage com rebeldia e ironia à conjuntura política brasileira, com o recrudescimento da ditadura, instaurado com o decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968. E, a despeito de, em tais circunstâncias, fazer cinema contestatório ter ficado perigoso demais, surge a tal estética do lixo – apelidada de Údigrudi, uma aliteração proposital do underground dos Estados Unidos para dizer contracultura. 

Isto porque esta turma nova se mostrava desapontada com os caminhos tomados pelo Cinema Novo, ao abrir mão da ideia precípua de escancarar as desigualdades sociais e, assim, fazer do Brasil um país mais justo e menos discrepante, pelas mãos do cinema e para os olhos do público, numa comunicação sem mediações.

Os filmes circularam entre cinéfilos aficionados pelo cinema alternativo. Razão bastante para não serem sucesso de bilheteria, salvo O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, ao lado de Júlio Bressane, com Matou a Família e foi ao Cinema (1969). Um ano depois, ambos, e mais a atriz Helena Ignez, criaram Belair Filmes, no Rio de Janeiro.  

Sarcásticos e provocadores, os realizadores do gênero marginal davam as costas aos cânones estéticos e narrativos, preferindo as fórmulas do experimentalismo cinematográfico, na contramão dos circuitos comerciais de exibição. O tal do Údigrudi só podia mesmo ser antipatizado pela censura dos mais ásperos tempos da ditadura – os do AI-5. 

Não podiam ser de bom-tom nem bem-vistas obras anárquicas, que escrachavam a sociedade de consumo e debochavam da comunicação massificadora. No cardápio da estética do lixo, temas insólitos, eróticos e audaciosos, tipos à margem da sociedade, anti-heróis e delinquentes, desajustados, drogados e libertinos. Feitos, principalmente, pela produtora Belair Filmes, no Rio de Janeiro, e pelo Núcleo de Cinema Boca do Lixo, nome emprestado de uma área no centro de São Paulo, frequentada por pessoas mal-encaradas pela polícia – marginais, biscates e meliantes.

Bom lembrar que Glauber Rocha está para o Cinema Novo, tanto quanto Rogério Sganzerla, para o Cinema Marginal. Tido e havido como o mais audacioso e inventivo diretor do período, O Bandido da Luz Vermelha é um filme de referência e se mantém na posição de uma das obras mais relevantes do cinema nacional.

 

O CINEMA NOVO E O ÚDIGRUDI, DIFERENÇAS

Enquanto o Cinema Novo, da década de 60, capitaneado sobretudo por Glauber e Nelson Pereira dos Santos, se apresentava como movimento congruente, o Údigrudi – o Cinema Marginal – não mantinha uma linearidade intestina, tanto que nem chegou à categoria de movimento. 

De vida curta, ele não sobreviveu à ditadura, que tratou de banir do país Rogério Sganzerla e Julio Bressane, aqueles que fundaram a carioca Belair. A semelhança entre o predecessor e o sucessor, porém, foi o fraquíssimo entusiasmo das redes exibidoras e o pouco ânimo dos espectadores. 

 

Rogério Sganzerla, o mais audacioso e inventivo diretor do Cinema Marginal, fotografado por Carlos Ebert Fonte: commons.wikimedia.org/ 

 

Na ausência de uniformidade reinante no Cinema Marginal, houve uma turma, que se unia sob o epíteto de Cinema Marginal Cafajeste, com toda a pujança apelativa da eroticidade. Também com pouca grana e produzindo filmes a toque de caixa, o erotismo foi a astúcia para angariar elevada exibição nos circuitos exibidores e, portanto, sustentar um público cativo. Destaque para os realizadores Antônio Lima, Carlos Alberto Ebert, Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e João Callegaro. 

 

FILHO DE PEIXE

Em 2016, o documentário brasileiro Cinema Novo leva pra casa o prêmio ‘Olho de Ouro’, no Festival de Cannes. Dirigido por Eryck Rocha, filho de Glauber Rocha, o filme é o registro poético do movimento dos mais importantes da América Latina, que sacudiu a criação cinematográfica brasileira dos anos 1960 a 1970. 

O filme-manifesto faz uma impecável mesclagem de trechos de produções da época com declarações dos grandes realizadores do Movimento Cinemanovista, esses que inventaram um jeito de fazer cinema, querendo chegar junto ao povo, no auge dos manifestos de contestação, em uma época de triste retrocesso. 

O júri considerou o documentário de Eryck Rocha um tratado impressionista de caráter inédito, que sublinha ser a cinematografia capaz de, a um só tempo, ser categórica descritiva, documental, engajada e fabulosa.

Assista, aqui, à entrevista com Eryck Rocha, o diretor do documentário Cinema Novo.

 

PELÍCULAS E DIRETORES EMBLEMÁTICOS DO CINEMA MARGINAL

. 1964 – À Meia Noite Levarei Sua Alma, de José Mojica Marins

. 1964 – Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de José Mojica Marins

. 1967 – A Margem, de Ozualdo Candeias

. 1968 – O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla

. 1968 – Trilogia do Terror, de Ozualdo Candeias

. 1968 – As Libertinas, de Carlos Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro 

. 1969 – A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla

. 1969 – O Anjo Nasceu, de Júlio Bressane

. 1970 – Copacabana Mon Amour *, de Rogério Sganzerla

. 1970 – Sem Essa, Aranha, de Rogério Sganzerla

. 1970 – Gamal, o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade

. 1970 – O Pornógrafo, de João Callegaro. 

.1971 – Bang Bang, de Andrea Tonacci

. 1991 – Matou a Família e foi ao Cinema, de Neville de Almeida e Júlio Bressane

  

Ainda hoje, aqui e ali, veem-se, em alguns filmes, o que preconizava a cartilha Údigrudi:

. 2006 – Andarilho, de Caio Guimarães

. 2011 – O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges

. 2015 – O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos, de Dellani Lima

  

Ao que eu acrescentaria:

. 1998 – Central do Brasil, de Walter Salles

 

O ÚLTIMO SUSPIRO

O Cinema Novo marca uma intensa criatividade, ideias e ideais, cuja palavra de ordem é a política e o meio, o cinema, à margem do sistema vigente e seus dispositivos comerciais, em que a tônica é a obra de autor. Sem nunca alcançar o intento de empolgar o grande público, terminou dragado pela florescente indústria cultural brasileira. No entanto, constituiu o movimento cinematográfico brasileiro da maior relevância e foi reconhecido pelo mundo inteiro.

A partir da década de 70, os resistentes do Cinema Novo seguem o rumo do Cinema Marginal para dar seguimento à perspectiva de contestação aos temas sócio-políticos. 

Coragem, utopia, ironia, teimosia, persistência ou tudo isso junto e misturado!

 

 

A SEQUÊNCIA DOS TEXTOS SOBRE ESSA TEMÁTICA: 

1- O Cinema Novo do Brasil

2- Cineastas e Filmes da Primeira Fase do Cinema Novo

3- A cena muda

4- Cinema Novo & Tropicalismo

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Graças ao elã do fã-clube, a Petrobras Cultural e a Mercúrio Produções produziram um revival, em DVD, de Copacabana Mon Amour, de Sganzerla, rodado em 1970, ano particularmente fecundo. O longa é exemplar para se compreender como fazer cinema em tempos de ditadura e obscurantismo.

 

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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.