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CINEMA NOVO & TROPICALISMO

14/01/2021 Eveline de Abreu Cinema e Teatro

Quando o canibalismo e a antropofagia capturam os filmes e invadem a telona dos cinemas

O período de 1968 a 1972 corresponde à sua terceira fase. O buliçoso Cinema Novo ganha o epíteto de canibal-tropicalista, isto é, quando ele e o movimento tropicalista se aproximam e passam a andar de mãos dadas, na contramão dos arquétipos estrangeiros, na defesa de uma identidade que tivesse a nossa cara. E a canção de Gil e Caetano são tributo e testemunha dessa união.

“E foi por isso que as imagens do país desse cinema

Entraram nas palavras das canções

Primeiro foram aquelas que explicavam

E a música parava pra pensar

Mas era tão bonito que parece

Que a gente nem queria reclamar

Depois foram as imagens que assombravam

E outras palavras já queriam se cantar”

– “Cinema Novo”, canção de Caetano Veloso e

      Gilberto Gil, do álbum Tropicália 2, 1993.

                                                                                

Em 1968, ano em que rolaram a Primavera de Praga – um rebuliço na antiga Tchecoslováquia que clamava por mais liberdades, apoiado pela juventude e intelectuais, devidamente reprimido pelas tropas soviéticas – e o Maio de 68 – a contestação da juventude estudantil francesa, com repercussão em outros setores sociais dentro e fora do país –, rolava, para nós, o AI-5, ato institucional que lançou o Brasil nos tempos mais soturnos da ditadura. Razão bastante para abafar de modo cabal as intenções do Cinema Novo de combate à asfixia das liberdades. No ano seguinte, o filme Macunaíma – adaptação homônima da obra-prima do escritor modernista Mário de Andrade –, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, atesta que o propósito inicial do Movimento Cinemanovista havia sido desbaratinado.

Foi em 1969 que os insurrectos do Cinema Novo passaram em revista o próprio movimento. Alguns se uniram à inspiração de um estilo alegórico-tropicalista – do qual Pindorama, de Arnaldo Jabor, faz parte – e outros, como Glauber Rocha, preferiram se refugiar da opressão em outros países. 

 

A VANGUARDA DA VANGUARDA 

Mundo afora, é possível estabelecer vários paralelos e muitas coincidências entre os Loucos Anos 20 e a década de 60. No Brasil, também. Se os modernistas – aqueles da Semana de Arte Moderna de 1922 – reivindicavam uma cara própria para o país e que deixássemos de macaquear cânones estéticos alienígenas (europeus, no caso), por seu turno, os tropicalistas atualizaram, 40 anos depois, a pretensão: de termos e mantermos os traços distintivos nacionais, fossem eles na arquitetura, escultura, literatura, música ou pintura. E o cinema não ia ficar de fora.

Em sua terceira e derradeira fase, o Cinema Novo – o tropicalista – libertou manifestações, como o carnaval, o futebol e a religião, do estigma de propulsores da falta de consciência sócio-política, ao fazer – bem ao contrário! – o eloquente elogio da cultura popular. Aqui, surge Macunaíma, uma comédia visionária escrita e dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, baseada na obra de mesmo nome do modernista Mário de Andrade, com um elenco de superatores como Grande Otelo e Paulo José, secundados por Dina Sfat, Hugo Carvana e Milton Gonçalves. O filme faz a metáfora o brasileiro engolido – daí, a antropofagia/canibalismo – pelo implacável sistema sócio-econômico capitalista refletido nas humilhantes condições de trabalho.

Também dublê de cantor e compositor, Grande Otelo é considerado dos maiores atores da história do Brasil. Fonte: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional (commons.wikimedia).

 

LIBERTÁRIO, CANIBALISTA E ESPALHAFATOSO DE PROPÓSITO

O movimento tropicalista, das mais extraordinárias manifestações que eclodiram na irrequieta década de 60, foi a pedra angular para as artes e os costumes brasileiros do século que passou. Rebelde por definição, ele misturou, na mesma caldeira e a um só tempo, empirismo estético, crítica social e insubmissão política.

Dona de uma estética de cores psicodélicas e gosto duvidoso intencionais, a Tropicália – como prefere Caetano Veloso – foi um movimento que atravessou todos os modos de expressão artística, e o cinema não iria certamente ficar de fora.

Quarenta anos depois, a noção de antropofagia/canibalismo contida no ideário do Modernismo, seja como metáfora, seja ao pé da letra, viu-se atualizada. Se, em Macunaíma, uma e outra se encontram no campo da representação, posto que o filme faz a metáfora do brasileiro engolido – daí, a antropofagia/canibalismo – pelo implacável sistema sócio-econômico capitalista refletido nas condições infames de trabalho, em Como era Gostoso o meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos, o personagem principal é capturado e devorado por antropófagos/canibais. Uma clara insinuação de que o Brasil deve assim proceder – metaforicamente, é claro – quando diante de seus colonizadores/detratores. 

Nélson Pereira dos Santos nas filmagens de Como Era Gostoso o Meu Francês. Fonte: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional (commons.wikimedia).

 

PELÍCULAS E DIRETORES EMBLEMÁTICOS DA TERCEIRA FASE

. 1969 – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha

. 1969 – Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade 

. 1969 – Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo 

. 1969 – Meteorango Kid, de André Luiz de Oliveira 

. 1969 – Os Herdeiros, de Cacá Diegues 

. 1970 – Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra 

. 1971 – Como era Gostoso o meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos 

. 1971 – Pindorama, de Arnaldo Jabor 

  

DE QUEBRA E DE LAMBUJA

Vale sublinhar que, à mesma época, houve filmes de realizadores que não estavam exatamente enquadrados no movimento cinemanovista, mas não menos importantes para a inovação do cinema nacional.

Eis, aqui, quatro exemplares de películas e diretores paralelos ao Cinema Novo: O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, e O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, ambos de 1962. Além de Selva Trágica, do mesmo Roberto Farias, de 1963, e Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri, de 1964.

 

UM FILME PARA NÃO ESQUECER

Destaque mais que merecido para O Pagador de Promessas, a única produção cinematográfica brasileira, até o momento, a arrebatar a Palma de Ouro, distinção máxima do mundialmente badalado Festival de Cannes, França, no qual foram apenas Brasil e Estados Unidos os países da América a obter tal privilégio, como também o primeiro filme sul- americano a receber indicação para o Oscar de 1963, na categoria de melhor filme estrangeiro.

Nela, Leonardo Vilar interpreta Zé do Burro, ao lado de Glória Menezes, no papel de Rosa, encabeçam o elenco de O Pagador de Promessas, que ainda inclui Norma Bengell, Othon Bastos e Antônio Pitanga.

No centro da foto, o extraordinário ator Leonardo Vilar.  Fonte: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional (commons.wikimedia)

Rodado na Bahia, em agosto e setembro de 1961, o filme, baseado na peça homônima de Dias Gomes, conta a história da peregrinação de um homem simplório do interior até a capital (Salvador), para cumprir a promessa de depositar, na Igreja de Santa Bárbara, uma cruz de tamanho natural, em agradecimento pela cura de seu burro de estimação. A obra é o retrato fiel do confronto da obstinada ingenuidade do sertanejo com a inclemente autoridade religiosa e as artimanhas e espertezas que grassam na cidade viciada e corrompida.

  

A SEQUÊNCIA DOS TEXTOS SOBRE ESSA TEMÁTICA: 

1- O Cinema Novo do Brasil

2- Cineastas e Filmes da Primeira Fase do Cinema Novo

3- A cena muda

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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.