Blog BR+

A MÚSICA DE MILTON NASCIMENTO NA TERRA DO JAZZ

02/07/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

Milton Nascimento tem uma história bem interessante do período em que fez trabalhos nos Estados Unidos, que talvez ainda não tenha sido suficientemente reconhecida como um capítulo de ouro em sua biografia. Foram quatro álbuns de qualidade inquestionável gravados por lá, fora as suas participações e de seus brothers do norte nos discos uns dos outros, além de registros de canções suas por intérpretes norte-americanos. Algo que já poderia ter inspirado a indústria fonográfica a lançar um estojo de CDs concentrado nesses álbuns oficiais e, como bônus, trazendo as faixas espalhadas em outros LPs. Um atraente índice de colecionador, para a felicidade de muitos fãs dentro e fora do Brasil, se os tempos de hoje fossem mais robustos para o mercado mundial do disco.

A admiração que os jazzistas, em especial,  têm pela arte musical de Milton desde o começo de sua carreira foi seguramente facilitada pela penetração que a Bossa Nova já havia alcançado nos States. O surgimento de João Gilberto em seu disco de estreia – Chega de Saudade – de 1958, causara frisson na cena musical brasileira, repercutindo no exterior. Quatro anos depois, a Bossa fincava bandeira no prestigiado Carnegie Hall, numa noite gelada de novembro em Nova York, considerada histórica para a música brasileira, abrindo caminho para a genialidade de Antonio Carlos Jobim, que até álbum com o famoso Frank Sinatra viria a lançar pouco depois.

Bridges

Foi com a música Travessia, escrita por Milton Nascimento e Fernando Brant, que o cantor e compositor crescido em Minas Gerais estourou no Festival Internacional da Canção, realizado na TV Record em 1967, Rio de Janeiro (cidade-berço real de Milton ou Bituca, como é carinhosamene apelidado). O sucesso no evento, do qual o artista participou com três canções concorrentes, fez com que Milton se tornasse um dos nomes mais luminosos de uma geração extraordinária em que também pontuavam compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Edu Lobo. Milton conquistara o segundo lugar no certame com a melancólica Travessia, além de classificar também Morro Velho, com letra e música dele, entre as dez primeiras premiadas. Um êxito e tanto que cabia num trem, que o levou a seu primeiro LP no Brasil, lançado em 1968.

Graças ao músico e produtor bossa-novista Eumir Deodato, já vivendo nos Estados Unidos naquela época, Milton começou a ficar conhecido por lá. Aliás, Deodato já havia sido muito importante para seu aparecimento no Brasil, conforme o próprio Milton contou a Chico Amaral, autor do livro A Música de Milton Nascimento, da Editora Gomes, publicado em 2013. “Deodato foi o cara que me fez cantar no Festival Internacional da Canção, por causa dele ganhei o prêmio de melhor intérprete. Porque eu só queria que os outros cantassem aquelas músicas" (NdR: Além de Travessia e Morro Velho, Maria, Minha Fé também fora classificada e defendida por Agostinho dos Santos, responsável pela inscrição das três composições de Milton, sem que ele soubesse). 

Nos bastidores do festival, Deodato apresentou Bituca a Creed Taylor, produtor da gravadora americana CTI, cujos discos eram distribuídos pela poderosa A&M Records. Sobre Milton, Deodato já tinha soprado nos ouvidos do homem da CTI que se tratava de “uma coisa totalmente nova, nada a ver com Bossa Nova; um clássico, mas com ritmos totalmente desconhecidos. Ainda não descobri que impulso rítmico é esse que ele dá à sua música", segundo conta Márcio Borges, em Os Sonhos não Envelhecem, Geração Editorial, 1996. A dica de Deodato foi certeira e, poucos dias depois do nome de Milton estourar na televisão brasileira, o artista já estava assinando contrato com Creed para fazer o Courage para o mercado americano. 

Nota em jornal dos Estados Unidos: O tijucano mais mineiro do mundo prestes a arrasar em Los Angeles com o álbum "Milton".  (Fonte: A&M Records).

O álbum, com a participação de Herbie Hancock ao piano – o primeiro músico americano que Milton conheceu – deu o que falar na cena jazz. Havia no repertório, Travessia – que, com letra em inglês de G. Lees, virou Bridges e Sarah Vaughan depois iria gravar, em dueto com Bituca – Canção do Sal, além da faixa que deu nome ao disco, feita por P. Williams. O encanto sobre eles foi tanto que o saxofonista Wayne Shorter, apaixonado por tudo que ouvia de Milton, ao tocar no Rio de Janeiro, em 1972, integrando o famoso grupo Weather Report, não titubeou em procurar Milton pessoalmente. Chamou o pessoal de sua banda e foi assistir ao músico mineiro e o Som Imaginário no palco. Adorou o que viu e convidou Milton para gravarem o álbum Native Dancer, saído em 1974 pela Columbia.

Herbie Hancock também estava no segundo disco de Milton nos EUA, e ficou tocado pela atmosfera de acentuada espiritualidade que rolou dentro dos estúdios, com os músicos e os engenheiros de som, todos comovidos com o que ouviam. Milton Nascimento afirmaria mais tarde que Native Dancer levou sua música para outras praias, alcançando músicos do rock e do pop. No álbum, cinco dos nove temas eram de autoria daquele intérprete de voz celestial, do inspirado criador de belas melodias vindas das Minas Gerais, daquele sábio que entendia tudo de harmonia e estava à altura do antecessor Tom Jobim, um dos autores (com Vinicius de Moraes) da querida The Girl from Ipanema

Dois anos depois, em 1976, a A&M Records voltava a convocar Bituca para um novo álbum, batizado simplesmente de Milton. Com as letras de nove canções vertidas para o idioma de John Coltrane (um dos grandes ídolos do trespontano), o terceiro vinil do músico brasileiro por lá trazia no repertório pérolas como Raça, dele e Fernando Brant, Cadê, parceria com Ruy Guerra e traduzida por Matthew Moore, e Nada será como Antes, com Ronaldo Bastos e versão de Rene Vincent. Tinha também um dos temas instrumentais mais lindos já compostos por Milton, chamado Francisco. Gravado nos estúdios Shangri-la, de propriedade dos músicos da The Band (que acompanhava Bob Dylan), o álbum contou com um escrete de feras brasileiras do naipe de Robertinho Silva, Toninho Horta, Naná Vasconcelos, Novelli, Raul de Souza e Airto Moreira, além de Wayne Shorter e Herbie Hancock de novo. A belíssima capa levava a assinatura do fotógrafo Cafi, que entendia bem dos mistérios da esfinge de Milton Nascimento (a extraordinária capa de Minas também era dele) e era íntimo de sua música. 

Lá vem a força, lá vem a magia... (Fonte: Reprodução/ Divulgação). 

Antes de a frondosa década musical de 70 terminar, Milton Nascimento voltaria aos Estados Unidos para fazer o Journey to Dawn, incluindo recriações muito curiosas de Canção da América, de Milton e F. Brant; de Maria, Maria, da mesma dupla; e de Crença, dele e Márcio Borges, que ganhou novo título e acabou batizando o álbum. 

Courage, Native Dancer, Milton e Journey to Dawn semearam a música do principal compositor do chamado Clube da Esquina nos campos do norte, exercendo até hoje um remarcável magnetismo sobre os artistas de lá. Posteriormente, Milton chamaria para seus álbuns lançados na terra natal gente como Ron Carter, Pat Metheney, James Taylor, Paul Simon, Lyle Mays, Jack Dejohnette, Hubert Laws e Herbie Hancock, todos presentes no não menos belo Angelus, de 1996. Sendo que, em 1986, o artista mineiro retribuiria o convite de Wayne Shorter para o trabalho em dupla que foi Native Dancer, para gravarem A Barca dos Amantes, registrado ao vivo no Brasil. 

Cantando as grandes canções com a voz preciosa que a natureza lhe deu, Milton acabou também fazendo muito bom uso das aulas de inglês do passado, no Ginásio São Luís, em Três Pontas, dirigido por padres canadenses. And nothing would be as it was.

#
Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.