Blog BR+

Uma trilha que vai dar no Sítio do Picapau Amarelo

07/10/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

 

 Imagem: Reprodução/ Divulgação

 

Os anos passam, as caravanas ladram, os lobos-guarás também, mas a gente não se esquece de um dos mais interessantes seriados de televisão já produzidos no Brasil. O Sítio do Picapau Amarelo, baseado na obra do escritor Monteiro Lobato, que, em 23 volumes publicados entre 1920 e 1947 (dados da Wikipédia) tornou-se um marco da literatura infantil brasileira, parece que foi feito também para a telinha. Já em 1952, quando a televisão ainda engatinhava no país da Rádio Nacional, a pequena imensa fazenda de Dona Benta, Tia Anastácia e outros seres encantados, bípedes ou não, ganhava sua primeira adaptação pela TV Tupi. Em 1964, a série passou para a TV Cultura, de São Paulo, depois foi para a Rede Bandeirantes, até que, em 1977,  caiu nas graças da Rede Globo que, contando com a coprodução da TV Educativa, virou um sucesso retumbante. Livros como "Reinações de Narizinho, "O Minotauro", "Serões de Dona Benta“ tinham mesmo um grande potencial para agradar a petizada, pois neles pulsava o folclore de uma terra de proporções continentais, riquíssima na seiva de tantas culturas, tribos, idiomas e biodiversidade, complexa demais em sua formação política e que ainda hoje se debate à procura da própria identidade, que é por natureza includente. 

Em sua fase mais famosa, na segunda metade da década de 70, o elenco televisivo do Sítio do Picapau Amarelo reunia atores do porte de Zilka Salaberry, Jacira Sampaio, Dirce Migliaccio, Tonico Pereira, Rosana Garcia dentre outros, todos perfeitamente talhados para encarnar a turma criada por Lobato. Mas como ignorar a trilha sonora reunida pelo arranjador, cantor e compositor Dori Caymmi, que convidou alguns dos mais inspirados músicos da época, para criar o cenário sonoro de um lugar tão mágico e bucólico?

Dori já tinha trabalhado, em 1975, na ótima trilha sonora da novela "Gabriela", que tinha como canção principal a "Modinha para Gabriela" escrita pelo próprio pai (o "Buda Nagô", segundo Gilberto Gil) e cantada por Gal Costa. Em depoimento a Márcio Proença, Dori revelou como chegou à nova empreitada, num momento delicado de sua vida: "Eu estourei um tendão de Aquiles jogando bola e fiquei muito tempo parado. Havia um ser maravilhoso chamado Edvaldo Pacote, que estava muito próximo dos meus pais e ele soube que eu estava operado e sem grana, pois eu havia investido um dinheiro na minha operação. E aí ele falou com o Boni, que sabendo da minha situação, assinou minha carteira e fiquei um bom tempo me recuperando, e tendo uma grana certa todo mês, até que chegou a época da gravação da trilha sonora do Sítio do Picapau Amarelo". Dori foi convocado para a tarefa e, muito agradecido, deu o seu melhor: "Eu falei com o Gilberto Gil para que ele fizesse uma abertura e comecei a chamar o Sérgio Ricardo e toda aquela turma.      

Em 1977, a gravadora Som Livre, pertencente ao mesmo grupo da Rede Globo, colocava nas lojas do país uma "bolacha" pretinha que trazia a tal faixa de Gil: "Marmelada de banana/ Bananada de goiaba/ Goiabada de marmelo/ Sítio do Picapau Amarelo...". Conduzida por uma flauta, a abertura da série já mandava todo mundo, gurias e moleques, para os sagrados do etéreo. A letra, engenhosa, anárquica como só as crianças, brincava numa melodia em que Gil fazia a festa. Com a palavra, o compositor baiano: "Eu preferi fazer uma canção que falasse de todos os personagens e do sítio todo, que ocupasse aquele espaço inteiro e nela coubesse Taubaté toda (N.R. cidade berço de Monteiro Lobato). Aí fui trazendo os personagens – boneca de pano, a Emília; sabugo de milho, o Sabugosa – e sempre procurando uma rima para "sítio do picapau amarelo" ao final de cada parte, terminando com "cidade Polichinelo", que é um personagem de um outro sítio, o polichinelo europeu", contou Gil a Carlos Rennó, organizador de "Gilberto Gil – Todas as Letras" (Cia das Letras, edição revista e ampliada, 2003). 

A canção mais icônica do seriado, considerada pelo crítico Pedro Alexandre Sanches um "tema retrotropicalista sertanejo-sideral", ficou tão tatuada na obra de Gil, que ele mesmo viria a regravá-la em seu best-seller para a MTV. Gil, no papo com Rennó: "A canção ficou muito popular por causa da série. Por nove, dez anos, todo dia, toda tarde, ela tocou, martelou. Mais tarde – após ela ter entrado no show Tropicália 2 -, a sua recuperação para o repertório do (disco) Unplugged foi um resultado dessa popularidade". Gil conta que a idéia de inclui-la no CD de 1994 foi de seu flautista na época, Lucas Santana, que "cresceu acompanhando o Sítio do Picapau Amarelo e que argumentou: Ela é uma música da nossa geração, muito emblemática para nós. É como se um fosse um botton na nossa camisa.

 

No quintal das gentes 

A prestigiada dupla Ivan Lins – Vitor Martins se faz presente com duas músicas. A primeira delas foi entregue à Lucinha Lins, que cuidou com doçura e delicadeza da "Narizinho".  A outra foi "Dona Benta", cantada por José Luís, desconhecido do grande público. Vale ressaltar que, além dos dois compositores citados e de Lucinha, outros integrantes de um importante coletivo musical dos anos 70, conhecido como MAU – Movimento Artístico Universitário, foram escalados para o repertório desse clássico da discografia brasileira. João Bosco e Aldir Blanc, por exemplo, também assíduos frequentadores da casa/núcleo do médico Aluísio Porto Carrero, na Tijuca, Rio de Janeiro, fizeram a quatro mãos o irresistível samba "Visconde de Sabugosa", com o violão e a dicção matreira de Bosco para a letra nota dez de Blanc, que coube como uma luva para o ator André Valli, que na tevê fazia a vez daquele "nobre de vintém". Outro tijucano da trilha é Jards Macalé, que se juntou a Marlui Miranda e a Xico Chaves em "Tio Barnabé", outro ponto alto do álbum, um batuque de terreiro que abre como canção de ninar.  

Dori Caymmi também compôs duas, ao lado de Paulo César Pinheiro. "Ploquet Pluft Nhoque (Jaboticaba)", interpretada pelo coral Papo de Anjo, além do tema do personagem "Pedrinho". "Arraial dos Tucanos", bela parceria de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando, é cantada por Ronaldo Malta, em registro bem diferente da posterior gravação de Geraldinho, em seu célebre disco "Bicho de Sete Cabeças;", de 1979. O produtor da Som Livre Guto Graça Mello também entrou com uma caprichada "Saci", o rei dos reis do folclore nacional. Gilberto Gil que, mais ou menos, na época da gravação da trilha, estava em turnê com os Doces Bárbaros, trajando nos palcos um figurino estilizado do encantado neguinho dos nossos contos populares, só viria compor uma para o Pererê pouco tempo mais tarde, para o disco da Banda Black Rio, em 1980. Aliás, "Peixe", canção de Caetano Veloso, também do repertório do show dos Doces Bárbaros (que reunia Gal Costa, Maria Bethânia, Gil e Cae), foi extraída do álbum duplo, gravado ao vivo mesmo, do grupo baiano. Se entrou na trilha como "tapa-buraco", funcionou muito bem. 

Completando as treze faixas do primeiro disco do Sítio do Picapau Amarelo, aparecem o patriarca Dorival Caymmi, honrando "Tia Nastácia" como ninguém e o quarteto vocal MPB-4, em gravação de "Passaredo", de autoria de Chico Buarque e Francis Hime, que também como "Peixe", não foi composta sob encomenda para o seriado, mas se harmonizou com o todo. 

Imagem: Reprodução/ Divulgação

Passados mais de quarenta anos da publicação do álbum inicial, as estórias escritas pelo polêmico e fundamental Monteiro Lobato ganharam força extra e eternidade definitiva por causa da música que rendeu como trilha. Ao todo foram lançados cinco (!) discos inspirados no universo do sítio. Nenhum tão bom como o pioneiro, que em 2005 foi reeditado em CD, em mais uma providencial iniciativa de Charles Gavin, para "Som Livre Masters". Até Cássia Eller entraria mais tarde na trupe musical, emplacando uma feita na medida para ela, "A Cuca te Pega". Um rock pesado, nem tão "brasileiro" assim, mas também com sua graça.

Sítio do Picapau Amarelo - Um dos grandes momentos da produção televisiva no Brasil.

 

Texto em memória de Alexandre Marques, um dos atores da versão inicial do convênio TV Cultura / Rede Globo.         

#
Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.