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UM CERTO FRANCISCO CÉSAR GONÇALVES

03/03/2020 Felipe Tadeu Arte e Música

O oitavo disco foi destaque em 2018.  (Reprodução/ Divulgação).

 

Os nove álbuns do músico paraibano mais surpreendente desde a aparição de Zé Ramalho devem ser motivo de sobra para a banda de música de Catolé do Rocha acordar a população da cidade, todo santo dia com uma do cancioneiro do Francisco. Que não é fácil viver de música no Brasil, todo mundo sabe, ainda mais de uns tempos pra cá, quando deram de amaldiçoar quem canta e diz nossos sentimentos mais nobres e complexos por saberem tanto do amor e da dor do mundo. E eles dançam. Todos eles dançam. Os chicos todos, até um outro dia raiar.

A arte de Chico César começou a ser descoberta pelo grande público no ano de 1994, quando o ex-integrante do grupo vanguardista Jaguaribe Carne lançou Aos Vivos pela prestigiada gravadora Velas, de propriedade de Paulinho Albuquerque, Ivan Lins e Vitor Martins. A pessoa que colocava o CD pra rodar e se deparava com uma música chamada Béradêro (percebam o impacto sonoro e poético já encarnados na palavra-título), caía logo para trás, caso estivesse numa cadeira, pasmo com a crueza do canto e do texto (veja abaixo a letra na íntegra). Quem era aquele cara, saído de um fim de mundo que fica a cerca de 450 quilômetros de João Pessoa, de Natal e de Fortaleza? Ele vinha de São Paulo e chegou, já no começo, à Alemanha. 

„Quando eu cheguei em São Paulo, eu era completamente anônimo e isso foi um momento muito importante na minha vida. Você ser desconhecido é algo estimulante! Eu levei um tempo para fazer com que as pessoas, inclusive os colegas, acreditassem naquele trabalho. Porque podia ser aquela ideia de „ah, é um nordestino a mais“, como se fosse um problema ser um nordestino a mais. Podiam pensar que eu era um cara ligado à estética do Elomar, do Xangai ou à estética do Alceu Valença. E não era. Era um cara que passava por aí, mas também tinha outras coisas. E até as pessoas perceberem que havia estas „outras coisas“ e que elas tinham fundamento, demorou um pouco“, contou ele em depoimento prestado aqui mesmo na Alemanha, à época em que saíu seu terceiro disco, „Beleza Mano“, em 1997.

Vinte e seis anos depois de chegar com seu acústico gravado ao vivo, Chico César é um artista consagrado que não se acomoda em termos de criatividade. Escritor habilidoso, de olhar poético de personalidade e que não nega fogo na hora de se engajar politicamente contra as injustiças sociais, o racismo (criou um grupo musical que batizou de Cuscuz Clã, desancando a terrível entidade segregacionista  dos Estados Unidos) e pelo meio ambiente, Chico também é formado em jornalismo, profissão que poderia ter seguido com desenvoltura, caso quisesse. (Ouça „Utopia“). Além de ter emplacado uma penca de sucessos populares, gravados tanto por ele, quanto por nomes como Maria Bethânia, Elba Ramalho, Daniela Mercury, Vanessa da Mata e até por Sting ( A „Soberana Rosa“, parceria de Chico com Ivan Lins e Vitor Martins virou „She Walks this Earth“), dentre tantos outros, o paraibano publicou também dois livros: Cantáteis – Cantos Elegíacos de Amozade , pela Garamond, em 2005, e Rio Sou Francisco, da Rubro Cartoneira Editorial, em 2012. 

 

O primeiro livro do músico.  (Reprodução/ Divulgação).

 

Bethânia contou ao jornalista Mauro Ferreira, em outubro de 1996, por que admira tanto as canções do pós-tropicalista de Catolé: „Na primeira vez em que ouvi Chico César mais demoradamente, com atenção, fiquei logo impressionada com a naturalidade de suas composições. Sinto na obra dele uma espontaneidade que vem com alma, no sentido mais lindo da palavra popular. Fico comovida com ele. Sinto essa alma somente na MPB e na música negra americana“. A irmã de Caetano pode perfeitamente ser considerada uma das grandes intérpretes e mensageiras do talento de Chico, já tendo cantado dele Onde Estará o Meu Amor, a magistral A Força que Nunca Seca (parceria do paraibano com Vanessa da Mata), Dona do Dom, dentre outras. E já comentou à imprensa que pretende gravar Xangô, de Chico e Suzana Salles.

 

A Vanguarda Paulistana como farol 

Como um dos seis filhos de mãe lavadeira e pai agricultor, Chico César estreou na música aos dez anos de idade, graças ao convite de uns guris para cantar no conjunto deles, o The Snakes, que depois viraria Supersom Mirim. Mais tarde, amarradaço no som de Itamar Assumpção, Tetê Espíndola e Arrigo Barnabé, foi para Sampa atrás de melhores possibilidades para exibir o seu talento. A chamada Vanguarda Paulista dava uma pista que levava ao futuro: „O pessoal de São Paulo nos anos 80 procurou caminhos fora do que estava rolando no grande mercado, não é? Com isso, ficou claro que havia outros caminhos que nós também éramos mercado, que nós podíamos criar outro mercado. Esse pessoal é uma influência para mim não só como linguagem, mas também como atitude diante do mercado. A única diferença que tenho com relação a eles é que eu sabia que não era underground, que eu não ficaria underground“afirmou ao autor destas linhas. 

De 2011 a 2014, Chico César encarou o desafio de ser Secretário de Cultura da Paraíba, fruto de sua experiência como gestor cultural iniciada em 2009. Certa feita, quando foi assistir a montagem da Paixão de Cristo na Semana Santa, em João Pessoa, foi impedido de se sentar numa das cadeiras que estavam livres no local do evento. „Essas cadeiras são para as autoridades“, afirmou um senhor a ele, que respondeu no ato: „Pode não parecer, mas eu sou uma autoridade“. 

Está lá, no início do livro Cantáteis: „Minha voz é serenata, labareda e labirinto“. Para a felicidade geral da nação, que adora ouvir rádio e comprar seus discos, como o cientista Domingos Cardoso, que registrou no final do ano passado, uma flor descoberta pela ciência, num trecho baiano da Chapada Diamantina, com o espirituoso nome de Aeschynomene chicocesariana. Pronto, já está catalogada.

A fulô que brotou da história do Chico César cantor compositor.

 

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Béradêro (letra), de Chico César 

 

Os olhos tristes da fita

Rodando no gravador

Uma moça cosendo roupa

Com a linha do Equador

E a voz da Santa dizendo

O que é que eu tô fazendo

Cá em cima desse andor

 

A tinta pinta o asfalto

Enfeita a alma motorista

É a cor na cor da cidade

Batom no lábio nortista

O olhar vê tons tão sudestes

E o beijo que vós me nordestes

Arranha céu da boca paulista

 

Cadeiras elétricas da baiana

Sentença que o turista cheire

E os sem amor os sem teto

Os sem paixão sem alqueire

No peito dos sem peito uma seta

E a cigana analfabeta

Lendo a mão de Paulo Freire

 

A contenteza do triste

Tristezura do contente

Vozes de faca cortando

Como o riso da serpente

São sons de sins, não contudo

Pé quebrado verso mudo

Grito no hospital da gente

 

Iê iê iê, iê iê iê

Iê iê Iê, iê iê iê

 

Catolé do Rocha

Praça de guerra

Catolé do Rocha

Onde o homem bode berra

 

Catolé do Rocha

Praça de guerra

Catolé do Rocha

Onde o homem bode berra

 

Bari bari bari

Tem uma bala no meu corpo

Bari bari bari

E não é bala de coco

 

Bari bari bari

Tem uma bala no meu corpo

Bari bari bari

E não é bala de coco

 

Catolé do Rocha

Praça de guerra

Catolé do Rocha

Onde o homem bode berra

 

Catolé do Rocha

Praça de guerra

Catolé do Rocha

Onde o homem bode berra

 

São sons, são sons de sins

São sons, são sons de sins

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.