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TINHA UM SÍTIO E UM VILAREJO NO CENTRO-OESTE BRASILEIRO

07/05/2020 Mazé Torquato Chotil Literatura e Leitura

Capa do livro: Daniela Dip Colossi. Projeto gráfico e editoração: ADC. (Imagem cedida por Mazé Chotil).

 

Uma história de migrantes em territórios indígenas abertos à colonização, no século 20. Nela, episódios relativos a identidades culturais e senso de pertencimento à terra aparecem. Relatos do que foi vivido, ouvido, escrito e, em seguida, transformado em livros.

Nasci no centro do Brasil, hoje Mato Grosso do Sul, lugar onde os povos indígenas Guarani, Kaiowá e Terena viviam sem preocupação com fronteiras, se locomovendo – como era a tradição, também em parte do Paraguai, Argentina e Uruguai – na imensa região da Bacia Platina. Até que os primeiros homens brancos europeus chegaram no século 16, seguidos de bandeirantes dos conflitos entre índios e colonizadores da Guerra do Paraguai, no século 19, e dos colonizadores do século 20.

Os inevitáveis conflitos entre indígenas e colonizadores só aumentavam de forma que, no começo do século 20, a resposta do governo foi a demarcação de reservas, a despeito da concordância dos povos indígenas. Foi, então, criado o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), substituído mais tarde pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e, em seguida, entre 1915 e 1928, foram instituídas oito reservas no hoje Mato Grosso do Sul. Os povos indígenas foram convidados a viver nas fronteiras das reservas, as aldeias, e as outras áreas foram liberadas para a colonização.

Como muitos nordestinos e alguns imigrantes, meus pais foram colonizadores. Chegaram à região em busca de terras para cultivar. Conseguiram. Para formar o sítio, foram aos poucos ceifando o mato até atingir a extensão de um hectare, para lá cultivarem arroz, feijão, milho e mandioca. E eu nasci, portanto, naquele Centro-Oeste do país, dentro da floresta, longe do mundo urbano das capitais como São Paulo ou Rio de Janeiro, mas perto da natureza, onde os céus eram enluarados e estrelados, se ouvia o som dos pássaros e dos animais como tatu, capivara, veado. E a gente tinha medo de bicho-papão e lobisomem.

Todo esse patrimônio visual e olfativo do sítio vive em mim, bem como outras lembranças do vilarejo para onde meus pais foram, como pequenos comerciantes, tempos depois. Lá a gente vendia de tudo: arroz, feijão, farolete, pó-de-arroz, vassoura, tinta. E eu brincava de comerciante, pesando um quilo de arroz ou de feijão e também de salva, de passar anel, de esconde-esconde, de circo, até que cresci e fui para São Paulo estudar jornalismo com o desejo de escrever. 

Depois de formada e de ter trabalhado durante alguns anos na imprensa da periferia da região oeste da Grande São Paulo, onde morava, decidi passar um ano sabático na Europa, a fim de aprender francês e inglês. Um ano sabático que já completou 35, porém somente na França.

Aqui em Paris, pensando no meu canto no centro daquele meu mundo, com saudade de um passado que vive em mim, escrevi três livros – Lembranças do SítioLembranças da Vila e Minha Aventura na Colonização do Oeste ”fincados” naquelas terras de um povo agora mestiço de nordestinos, gaúchos, japoneses, italianos, paraguaios, indígenas. Os dois primeiros, em princípio da categoria infantojuvenil, mas também para toda criança que existe em nós adultos. O terceiro conta a história da nordestina que saiu de pau-de-arara do sul do Ceará com marido e crianças pequenas em busca de terras para cultivar e fazer a vida.

 

  

Capa "Lembranças do sítio" - Ilustrações: Lourdes de Deus & Fotografia: Valdemy Teixeia. Projeto Gráfico: ADC Criação. / Capa e Projeto Gráfico "Lembranças da vila"Slogan Publicidade. (Imagens cedidas por Mazé Chotil).

 

Tenho voltado ao meu “paraíso” sempre que posso, constatando que a realidade dos tempos do meu nascimento muito mudou. Estes livros têm servido para falar do passado às crianças de hoje em escolas, encontros, feiras de livros. Eles estão em todas as bibliotecas das escolas do SESI MS (Serviço Social da Indústria do Mato Grosso do Sul), servindo para a leitura dos pequenos, mas também para a alfabetização de adultos, o que me faz muito feliz. No Sudeste, e até mesmo no Nordeste, eles também vêm sendo utilizados para falar do Centro-Oeste brasileiro, pouco conhecido dos europeus, mas também de muitos brasileiros.

No Japão, nos Estados Unidos e aqui na Europa, os livros têm encontrado leitores no meio de estudantes da língua portuguesa, que deles se servem como instrumento pardidático. De leitura fácil, eles ajudam a apreender uma região no coração do país, por meio das lembranças romanceadas do que vivi no meu canto do Centro-Oeste brasileiro.

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.