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TEATRO POPULAR SOLANO TRINDADE

31/03/2021 Paula Botelho Cinema e Teatro

Entre antiguidades, artes plásticas, móveis rústicos e restaurantes charmosos, a cerca de uma hora de São Paulo, a cidade de Embu das Artes preserva um espaço histórico, artístico e cultural do folclore afro-brasileiro, resultado do trabalho do pernambucano Solano Trindade (1908-1974).

“Poeta do povo”, como também era conhecido, ele foi grande folclorista e pesquisador das tradições populares, em especial dos ritmos e danças populares afro-brasileiras, além de escritor, produtor e ator. 

Solano Trindade, o "poeta do povo".  Fonte: Coletivo Pretaria.

Solano e sua mulher, a coreógrafa Maria Margarida da Trindade criaram, em 1950, o Teatro Popular Brasileiro (TPB), com sede no Rio de Janeiro, ao qual aderiu o sociólogo Edson Carneiro. O TPB foi uma iniciativa que dava oportunidade de aprendizagem a pessoas das classes populares, enquanto trabalhava para a afirmação de sua cidadania e direitos. Anos depois, em 1975, a filha, Raquel Trindade – também conhecida como Kambinda – criou o Teatro Popular Solano Trindade (TPST), em Embu das Artes, com o mesmo espírito do TPB. Artista plástica, coreógrafa e folclorista, Kambinda perpetuou o legado dos pais, além de ter formado o grupo de samba de bumbo Urucungos Puítas e Quijengues, em 1988, e, no Rio de Janeiro, fundou o Teatro Popular Margarida da Trindade, com a Comunidade do Jardim Curicica, em Jacarepaguá. Criou enredos, figurinos e carros-alegóricos para algumas escolas de samba, como a Vai-Vai e a Mocidade Alegre.

O TPST – organização não governamental desde setembro de 1980 – tem a finalidade de promover e preservar a cultura popular brasileira, em particular a cultura negra, popular e urbana, contribuindo para a valorização da identidade afro-brasileira, por meio da dança, do teatro, artes plásticas e literatura. Divulga e oferece a prática (em cursos e outras formas) de uma variedade de ritmos e danças da cultura popular. Entre eles, o maracatu, o coco e o guerreiro (de Alagoas e Pernambuco), samba lenço rural paulista, cafezal paulista, lundu colonial, jongo mineiro, jongo fluminense, jongo da serrinha, ciranda, bumba meu boi, e toques dos orixás. Para Solano, era necessário “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte” os ritmos e as danças, frase que se tornou o slogan do Teatro Popular Solano Trindade.

Fachada do Teatro Popular Solano Trindade.  Fonte: reprodução Afreaka.

Curiosamente, um achado sobre o marco da atividade artística da cidade de Embu das Artes se registra com o trabalho do santeiro Cássio M'Boy, descrito na página da Wikipédia como destinatário do “Primeiro Grande Prêmio na Exposição Internacional de Artes Técnicas em Paris”. Cássio é também retratado como professor de vários artistas, e às voltas com expoentes do Movimento Modernista de 1922 e das artes de São Paulo, incluindo Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi, Oswald de Andrade. Há também menção ao relevante trabalho de Sakai de Embu, ceramista e escultor, e então discípulo de Cássio. 

Embora outras fontes sejam de maior precisão e rigor histórico e cultural, a página ainda constitui consulta comum, e Solano Trindade aparece como parte de um grupo de artistas plásticos, criado por Sakai, e como quem  trouxe a cultura negra, congregou artistas e introduziu a tradição dos orixás. Há, porém, muito mais a ser dito e repensado quando indagamos o lugar cultural que se concede a cada artista. E é também por isto que precisamos falar de Solano Trindade, da imensa riqueza de seu trabalho e do Teatro Popular que leva o seu nome.

 

INTERSEÇÕES ENTRE ARTE E POLÍTICA

Trazer a cultura afro-brasileira ao conhecimento do povo constituiu propósito que culminou, em 1930, na criação da Frente Negra Pernambucana, extensão da Frente Negra Brasileira (FNB), e Solano foi um dos fundadores. A instituição da Frente Negra Brasileira também contribuiu para o surgimento do Centro Cultural Afro-Brasileiro, em 1936, com a finalidade de divulgar as obras de intelectuais e artistas negros e ensinar “que não há raça superior e nem inferior, e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural” *.  

Em 1945, Solano Trindade criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, junto com Abdias Nascimento, e com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. A realização do I e II Congressos Afro-Brasileiros no Recife e em Salvador ofereceu campo fértil para novas interpretações sobre as discussões raciais no Brasil, especialmente depois que Gilberto Freyre lançou Casa-Grande & Senzala. Este fato, segundo o Geledés – portal de história e cultura negra brasileira – contribuiu sobremaneira para que intelectuais brancos valorizassem a contribuição cultural dos afrodescendentes.

A arte das classes subalternas era vista por Solano como bem próxima das expressões religiosas e culturais de origem afro-brasileira. A discussão ocorreu, porém, em uma época quando o movimento negro entendia que a “elevação moral” devia acontecer por meio do estudo e do distanciamento das manifestações culturais populares. Solano Trindade, entretanto, emergia como divergência das lideranças negras da década de 40, pois via o candomblé como resistência cultural ao racismo e afirmação da identidade negra **.   

Solano lidava, assim, naquela época, com certa estigmatização do legado afro-religioso. Além disto, enquanto Abdias do Nascimento e outros defendiam que o problema do racismo era do âmbito do preconceito de cor e da discriminação social, Solano entendia que estava no campo da luta de classes, trazendo divergências importantes, por perceber que o fim da exploração capitalista era o que se configurava como solução para o fim da opressão da população negra no Brasil, e não pela integração da população negra na ordem competitiva, como grande parte das lideranças negras percebia.

Solano concebia a participação ativa em um movimento político como necessária à expansão das discussões raciais, e assim se filiou ao Partido Comunista. Contudo, durante o Governo Dutra houve intensa perseguição aos comunistas, e Solano foi preso, mas continuou escrevendo e fazendo teatro quando saiu da prisão. 

Seu interesse pelo folclore e danças populares se relacionava com a pesquisa das fontes de origem para fazer o que entendia ser justo e necessário: devolver ao povo, em forma de arte, o que lhe era devido. E por este motivo se empenhou para a criação do Teatro Popular Brasileiro, bem como na de outros grupos teatrais que valorizassem os afrodescendentes e contribuíssem para o fortalecimento da autoestima do povo negro, e este talvez tenha sido seu objetivo mais ansiado. A intensa divulgação de seu trabalho na Europa contribuiu para que isto caminhasse na direção desejada, e, na volta ao Brasil criou um núcleo artístico, com sede em sua própria casa, em Embu das Artes. Apaixonado pela cidade, para lá se mudou, e sua casa tornou-se polo que revolucionou o local e aumentou o fluxo turístico. Solano chegou a ser conhecido como “o patriarca do Embu”.

 

ATOR, PRODUTOR E POETA

São muitas as facetas do extraordinário Solano Trindade. Como ator, foi o primeiro a encenar a peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, em 1956. Também atuou nos filmes Agulha no Palheiro (1952), de Alex Viany, Mistérios da Ilha de Vênus (1960), de Douglas Fowley, e Santo Milagroso (1966), de Carlos Coimbra.  Como produtor, fez alguns filmes para televisão – O País dos Cadillacs, De Pedro a Pedro e Magia Verde. Neste último, atuou como ator e diretor, e merece destaque a premiação do filme no Festival de Cannes, em 1975.

A escrita poética foi outro legado de Solano Trindade. Carlos Drummond de Andrade viu em sua poesia “uma força natural e uma voz individual rica e ardente que se confunde com a voz coletiva”. Um de seus poemas, “Tem gente com fome”, foi musicado e gravado em 1975, pelo grupo Secos e Molhados. Mais recentemente, a campanha Tem Gente com Fome, iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, lançada em 16 de março passado, utilizou a letra em uma chamada social para arrecadar fundos para a doação de cestas básicas a 223 mil famílias em todo o Brasil,  neste contexto de pandemia. 

Proibida pela censura da época da ditadura, a canção foi regravada em 1980, por Ney Matogrosso, no álbum Seu Tipo, em uma fina leitura musicada da poesia de Solano Trindade.  

A poesia é uma paródia de “Café com pão”, de Manuel Bandeira, enquanto Solano, noutro contexto, “faz a fome virar refrão”. Lastimável, entretanto, que o “dar de comer” fosse visto, na época, como equivalente a “comunista”, “perigoso”, e o valor de “repartir o pão” estigmatizado. (Eduardo de Assis Duarte). 

 

A POESIA COMO DENÚNCIA E DESCONTRUÇÃO DO RACISMO

A poesia de Solano Trindade frutificou em livros como Poemas Negros, Poemas de uma Vida Simples, Seis Tempos de Poesia e Cantares de Meu Povo, publicados entre as décadas de 30 e 60. Para Zilá Bernd, em Poesia Negra Brasileira: antologia (1992), sua poesia “é talvez a que apresenta o maior número de traços em comum com a melhor poesia negra produzida nas três Américas”. 

Solano questiona a subalternidade a que estão submetidos os afro-brasileiros e entende que “o poeta fala por si e por aqueles com os quais se identifica, na expectativa de que estes também se conectem com quem toma a palavra” (Assis Duarte): 

  

“Eu canto aos Palmares
Sem inveja de Virgílio de Homero
E de Camões
Porque o meu canto
É o grito de uma raça
Em plena luta pela liberdade”

...

“– Eita negro!
Quem foi que disse
que a gente não é gente?
quem foi esse demente,
se tem olhos não vê..."

 

Trechos de Cantares ao Meu Povo (1962), quarto e último livro publicado por Solano Trindade

 

Solano traz o discurso do colonizador e oferece a poesia como possibilidade de liberdade face à opressão:

 

“O opressor
não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema
é cantado através dos séculos,
minha musa
esclarece as consciências
Zumbi foi redimido...”

 

Trecho de Cantares ao Meu Povo (1962), quarto e último livro publicado por Solano Trindade

 

“(li num jornal)

procurei o crime do homem

o crime não estava no homem

estava na cor de sua epiderme.”

 

Trecho de Cantares ao Meu Povo (1962), quarto e último livro publicado por Solano Trindade

 

Antiga é a luta para a desconstrução do racismo. E muito o que dizer do patrimônio exuberante que o preconceito esconde. O trabalho de Solano Trindade e do teatro que leva seu nome é um convite à reflexão. Convite, também, ao conhecimento do pródigo legado literário, cênico e folclórico para o Brasil. Contribuição inestimável na discussão sobre o racismo, na valorização da riqueza folclórica afro-brasileira e na inspiração para tantas pelejas ainda pela frente. 

Solano Trindade faleceu em 19 de fevereiro de 1974, aos 66 anos, no Rio de Janeiro. Em 1976, retorna nos versos do sambas-enredo das escolas de samba Vai-Vai e Quilombo. Mais uma vez, devolvendo ao povo a arte. 

Por que devolver é generosamente sair do centro do próprio mundo na direção dos outros. 

__________

* http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1166-solano-trindade-presente

 

** https://www.historia.uff.br/stricto/td/2135.pdf

 

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Paula Botelho

Doutora em Language, Literacy and Culture (Universidade de Maryland), mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), tradutora certificada (Centro de Ensino Brasillis), reside nos Estados Unidos há quase 15 anos. Seus livros e textos discutem o bilinguismo, migração, português como língua de herança e a visão da imprensa americana sobre a cultura brasileira. Atualmente, trabalha com escrita e tradução, ensino de português para estrangeiros, como em oficinas de cultura brasileira e literatura para crianças brasileiro-americanas.