05/02/2020 Felipe Tadeu Arte e Música
Raul de Souza em ação no palco do Jazzclub, em Mannheim. Na bateria, Mauro Martins. (Foto: Felipe Tadeu).
Todo mundo que aprecia música brasileira a ponto de ler sobre ela sabe perfeitamente que o Beco das Garrafas está para a Bossa Nova assim como o Estácio está para o Samba. Situado na Rua Duvivier e encravado no bairro mais famoso do Brasil – Copacabana –, o Beco reunia nos anos 50/60 várias das casas noturnas mais badaladas, onde se podia ouvir muita música ao vivo, na outrora capital do país. Foi ali, naquele cantinho sossegado de uma Copacabana prestes a entrar em ebulição populacional, que se encontravam toda noite os mais destacados instrumentistas que viviam no Rio de Janeiro de então – muitos deles, iniciando na carreira. Um deles era Raul de Souza, também conhecido como Raulzinho, considerado um verdadeiro as do trombone.
Morador de Bangu, bem longe da praia dourada em que ficava o monumental Hotel Copacabana Palace, o trombonista que na certidão de nascimento se chama João José Pereira de Souza, conquistava pouco a pouco seu lugar ao sol ali naquela parte da cidade cheia de granfinos, turistas ou não, fosse acompanhando Leny Andrade com o Trio 3 D (do pianista Antonio Adolfo) no aplaudido show “Estamos Aí”, que agitava o Bottles Bar, fosse nas jam-sessions dominicais do Little Club que incendiavam o “pedaço”. João Gilberto, Tom Jobim, Edison Machado, Sérgio Mendes, Tião Neto... o que não faltava no Beco das Garrafas era músico habilidoso. A Bossa-Nova foi o resultado do magnetismo que atraiu dezenas de feras que, apaixonados pelo jazz norte-americano e com o samba nas veias, iriam colocar o Brasil na mainstream da música internacional daquela época.
Raulzinho, ex-tocador de tuba na banda de uma fábrica de tecidos, conhecia também outros instrumentos de sopro e virou até militar por certo tempo por causa da música. Mais tarde, ao conhecer o flautista Altamiro Carrilho, um dos grandes nomes do choro, foi convidado por ele a fazer parte da Turma da Gafieira, participando também de programas de rádio bastante populares.
Em 1964, com 30 anos de idade, o músico, que já tinha optado pelo trombone de válvulas, foi um dos catalizadores do Sexteto Bossa Rio. Este acompanhou o pianista Sérgio Mendes no aplaudido álbum “Você Ainda Não Ouviu Nada”, do qual fazia parte também Edson Maciel, trombonista de primeira, amigo de Raul de Souza – dois instrumentistas dispostos a inovar na cena do samba-jazz! No encarte do álbum, reeditado em cd pelo selo Dubas em 2002, o disco do sexteto era comentado por um empolgado Arino de Mattos: “Ora, eis aí o resultado tremendamente válido de um trabalho feroz e paciente, fatal e obstinado, mas espontâneo. Samba bom. Samba puro e duro. O samba, sim. O samba de sempre, mas samba novo também.”.
Em depoimento ao autor dessas linhas, Raul de Souza contou um pouco sobre a razão do seu sucesso, numa era fascinante da música universal e do próprio Brasil. "O trombone vinha de muitos anos nos Estados Unidos. No Brasil, o que havia no começo era trombonista que tocava em orquestras, não improvisadores. Eu e Edson Maciel fomos pioneiros nisso.”. O consagrado jornalista e biógrafo Ruy Castro, que escreveu o fundamental “Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova” (Cia.das Letras, 1990), conta em seu livro o que era aquele celeiro à beira-mar chamado Beco das Garrafas: “Um verdadeiro who's who de grandes músicos passou por aquelas canjas domingueiras no Little Club e, depois, pelas noites do Bottle's: os trombonistas Raul de Souza (na época, já admiradíssimo como Raulzinho) e os irmãos Edmundo e Edson Maciel; os saxofonistas e flautistas J.T. Meirelles, Aurino Ferreira, Paulo Moura, Juarez Araújo, Cipó, Jorginho e Bebeto... ”, conta Ruy, numa lista que parece não ter fim e onde constam também Dom Um Romão, Tenório Jr., Luizinho Eça, Chico Batera, Airto Moreira, Wilson das Neves, Maurício Einhorn e Rildo Hora.
A carreira solo e a incursão no cenário internacional
Raul de Souza fez parte de outras bandas que também deram o que falar: Os Cobras, que em 1964 lançou “O Lp” (reeditado em cd em 2001 pela RCA), Os Catedráticos, de Eumir Deodato, e a Impacto 8, que o trombonista criou em 1968 e que gravou “International Hot”, disco que dava uma pista do que o trombonista iria aprontar nos Estados Unidos, onde viveria mais tarde. A Impacto 8 é citada na biografia de Robertinho Silva – para muitos, o melhor baterista brasileiro –, que também a integrou. “Ainda que a intenção da banda fosse tocar em baile, ela era um pouco diferente. A grande influência no momento era o ritmo americano bugaloo, tocado por exemplo pela banda Blood Sweet and Tears. No repertório também havia músicas de James Brown, bem diferente do que tocavam as bandas de baile da época” (Se a Minha Bateria Falasse, de Robertinho Silva e Miguel Sá , editora H. Sheldon, 2013).
A estreia com trabalho-solo foi com “À Vontade Mesmo”, em 1965, ano em que vai pela primeira vez à França, país onde atualmente vive durante o verão europeu. Ao voltar para o Brasil, é convidado por Roberto Carlos, em plena ascensão como ídolo máximo da indústria fonográfica local, para tocar na sua RC-7. Em 1969, depois da experiência com a Impacto 8 e com o rei do iê-iê-iê, Raul vai viver em Acapulco, no México. Fica por lá até 1973, antes de partir para a terra do jazz. “Flora Purim (cantora e compositora de jazz carioca) me mandou um dinheiro para ir tocar com ela numa temporada de um mês e eu acabei ficando. Com Airto Moreira (NdR: ilustre percussionista casado com Flora) eu gravei meu primeiro disco para a Milestones, o ‘Colors’ (1974, co-produzido por Airto), numa época em que ele tocava na banda de Miles Davis”, contou Raul.
A longa vivência que teve nos States foi muito frutífera, enveredando pelo funk e pelo jazz-fusion. Aperfeiçoou seus conhecimentos no Berklee College of Music; tocou com nomes como Cal Tjader, Sonny Rollins, George Duke e com conterrâneos como Milton Nascimento, Toninho Horta e a grande Flora Purim, a amiga que o levou para a América do Norte. Em 1978, Raul de Souza pegou um avião para a terra natal e foi uma das estrelas do ótimo Festival de Jazz de São Paulo, que teve também no programa atrações internacionais de renome, num evento que chegou a ser transmitido pela televisão. O trombonista do subúrbio do Rio de Janeiro causou sensação com seu grande talento nas artes da improvisação, portando uma cabeleira black-power frondosa como a da ativista política Angela Davis (ouça Nana, clássico de Moacir Santos, em leitura especial de Raul).
Convite para o primeiro lançamento do trombonista em 2020. (Fonte: Felipe Tadeu).
Um dos maiores do mundo
Hoje, aos 85 anos, Raulzinho continua excursionando pelo mundo, gravando seus álbuns (dezessete ao todo). Em janeiro de 2020, por exemplo, lançou no Brasil “Curitiba 58”, pelo selo SESC. Em maio, é a vez de sair o álbum gravado na Alemanha em 2019. “Nesse disco eu só toco três músicas minhas. Daí fui procurando músicas de outros amigos meus compositores. Tem de Chico Buarque, que conheço desde o começo da carreira dele, em 1966/67. Me deram a sugestão de gravar o ‘Apesar de Você’, em que o Alex Correa fez o arranjo. Gravamos também ‘Tombo in 7/4’, que é uma música do Airto Moreira que ele gravou há muitos anos. Tem também uma homenagem à minha netinha mais nova, Aura, além do ‘Funk das Meninas’, que fiz para umas pessoas que trabalharam comigo na França. Tem a balada que vai ser o nome do cd, a ‘Plenitude’, tem ‘Nanã’, de Moacir Santos, tem George Duke, do álbum ‘Sweet Lucy’, além de uma do saxofonista Wayne Shorter, ‘The Beauty and The Beast’. O cd vai sair em vinil também!”, comemorou o trombonista do Rio de Janeiro que veio em dezembro a Mannheim, na Alemanha, se apresentar no palco do Ella & Louis com o trio de Viviane de Farias, cantora e compositora brasileira radicada no país de Kurt Weil.
Vida longa ao inventor do “souzabone”, majestade do samba-jazz!
Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.