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Quando nem a bolha de silêncio é capaz de nos calar

23/02/2019 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras

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Foto:  Ricardo Durant

Aos nove anos, Lak Lobato perdeu a audição. Ninguém sabe muito bem qual foi o motivo. Possivelmente, uma meningite silenciosa resultado de uma caxumba mal curada. Durante vinte e cinco anos, o silêncio a acompanhou, mas ele não a impediu de se tornar uma grande comunicadora. 

Ótima em leitura labial, Lak é surda oralizada e estudou em escola regular com outras crianças não surdas (ter perdido a audição já alfabetizada possibilitou isso). Tornou-se leitora voraz ainda adolescente, aprendeu outras línguas (espanhol e francês), entrou na faculdade e se formou em publicidade. Trabalhou cerca de um ano em uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, a IBM, e, ao tomar um susto, quando quase perdeu a visão, descobriu um novo talento: escrever. Começou com o blog “Desculpe, não ouvi”, contando sua experiência como forma de colocar para fora o sentimento que a acompanhava. Afinal, afirma cheia de humor, “Ter uma deficiência, tudo bem. Mas duas já é demais!”. 

O blog também a levou a entender mais sobre surdez e deficiência auditiva e, em conversas com especialistas, descobriu o implante coclear. Mais uma vez sua vida mudou. Decidiu fazer o implante e, aos trinta e dois anos, voltou a escutar os sons do universo. Saiu da bolha de silêncio, como ela mesma define, redescobriu um novo tipo de relacionamento com o mundo, virou palestrante, frustrou-se ao descobrir que pôr do sol não tem som e entendeu que recuperar a audição pode ser mais difícil que perdê-la. 

Sua história virou um livro: "Desculpe, não ouvi" – uma autobiografia baseada nas histórias escritas por ela em seu blog e publicada por meio de um financiamento coletivo via internet. Surpreendeu-se quando descobriu que, em menos de trinta dias, já tinha atingido mais do que o dobro do montante necessário para o lançamento do livro. Foi aí que descobriu o impacto incrível de seu trabalho. O sucesso da primeira edição e o interesse causado entre pais a fez pensar em um novo projeto. Em dezembro de 2017, lançou seu segundo livro: "E não é que eu ouvi?", focado no público infantil. Ele conta a história de uma menina que um dia acorda dentro de uma bolha de silêncio; ela consegue se comunicar com o mundo, mas sente falta de ouvir e descobre um aparelhinho mágico que a ajuda com sua audição. Lak se surpreendeu mais uma vez com a repercussão do projeto, que passou a ser procurado, e com a quantidade de pais e educadores que viram nele um ótimo exemplo para trabalhar a diversidade de uma forma leve e divertida. 

Em entrevista exclusiva para o Blog BRmais, Lak divide, de forma bem-humorada e surpreendente, sua trajetória, conquistas e frustrações como surda oralizada e, posteriormente, como usuária de implante coclear. 

Lak, qual sua sensação, o que você sentiu quando perdeu a audição ainda pequena? 

Eu sempre lidei muito bem com a surdez, pois eu não tinha muita compreensão do que estava acontecendo. Imagino que eu perdi a audição na idade certa, pois já tinha idade para ter a linguagem desenvolvida, mas ainda não tinha idade para compreender a complexidade da situação. Eu continuei vivendo da melhor forma possível, mas eu confesso para você que eu sentia muita falta de ouvir. Não era falta de me comunicar com os outros, pois eu conseguia me comunicar bem. Eu sentia falta de ouvir porque eu gosto de ouvir. Ouvir para mim é um prazer. Gosto de escutar uma música. Gosto de saber o que está acontecendo ao meu redor. Gosto de saber que tem passarinho cantando. Gosto de saber que as pessoas estão rindo atrás de mim. Pra mim, é muito importante esta relação com o mundo. Porque se você não está ouvindo, obviamente você está dentro de uma bolha de silêncio, isolado. Você não está acompanhando o que está acontecendo ao seu redor.

Interessante este seu depoimento. Normalmente ficamos preocupados em nos comunicar com o outro. Você nos coloca um outro ponto que é o relacionamento com o mundo, não apenas a capacidade de se comunicar. 

Eu gosto de ter esta facilidade de conversar com as pessoas. Se alguém está falando uma outra língua, eu vou perguntar como fala isso ou aquilo. Mas não é só isso. Ouvir não é só a comunicação com o outro. Por exemplo, você vai à praia sem aparelho... não é a mesma coisa. Se está de costas para o mar, sem aparelho, uma onda pode vir e te derrubar. A minha relação com o mundo sem aparelho muda. Você não tem como saber o que está acontecendo às suas costas. Eu estou cansada estes dias e tirei o aparelho. Meu aparelho tem proteção contra a água, mas eu não tenho usado ele todos os dias. Então eu não estou ouvindo as ondas, não consigo ficar de costas para elas porque eu não sei se elas estão se aproximando. 

Como foi sua trajetória de escrever o blog, quase como um diário dividindo suas experiências, até chegar o lançamento de livro infantil? 

Quando a gente fala em surdez, é muito comum relacioná-la automaticamente à língua de sinais. Eu entendo e não tenho nada contra a língua de sinais. Até sei o básico. Mas não é o meu caso. Eu tenho uma surdez adquirida e minha língua sempre foi a língua falada e a leitura labial. Eu também sempre li muito. O meu português sempre foi muito estimulado. Eu comecei meu blog porque só encontrava coisas sobre surdez e línguas de sinais. Queria escrever sobre pessoas que perdem a audição em situações como a minha ou que nasceram surdas, mas foram bem estimuladas com a língua falada e se comunicam através da leitura labial ou com a ajuda da tecnologia. Comecei a conhecer mais e divulgar no meu blog. Eu contava muito do meu caso e, como não tenho formação em medicina ou fono, buscava informações com médicos e fonoaudiólogos. Eu escrevia sobre os tipos de surdos, sobre as tecnologias auditivas, sobre como se comunicar com uma pessoa que não ouve bem, enfim, sobre o meu universo. Aliás, eu não conhecia muito esta parte da tecnologia com os aparelhos. Inclusive, fiz o implante depois que comecei a escrever o blog e conhecer mais sobre as tecnologias. 

E como surgiu a ideia do livro? 

As pessoas que liam o blog me perguntavam quando eu ia transformar isso em um livro, pois queriam guardar ou dar para alguém. Também comecei a escrever para algumas revistas e sites. Depois de quatro anos de muita insistência, eu fui fazer uma palestra no TedX. O tema do evento foi “atitudes que inspiram”. Na palestra, eu contava a minha trajetória e uma história boba. Eu contava que a primeira vez que eu fui ver o pôr do sol depois do implante, fiquei decepcionada, pois imaginava que pôr do sol fazia barulho, mas ele não faz. Aliás, descobri que tem várias coisas que não imaginava que fazem barulho... e outras não! Achei que era só uma história boba, mas vi como aquilo mexia com a plateia. As pessoas riam e choravam com esta minha história; o jeito que eu contava as envolvia. Elas choravam de cair lágrimas e aquilo foi fascinante. E aí eu pensei “eu posso ser só mais uma pessoa contando histórias sobre surdez, mas a maneira como eu conto ninguém consegue contar. Porque esta história, ela é minha e eu tenho um jeito único de contá-la que encanta e envolve as pessoas”.

E como foi o lançamento do livro infantil? 

Com o livro infantil, foi totalmente diferente. As pessoas já entravam no site antes do lançamento das vendas. Fui chamada para fazer palestras como autoridade do mundo infantil, participei de eventos dos mais significativos e importantes! Fui a cidades das quais nunca tinha ouvido falar. Percebi que existia uma carência de pessoas que falavam sobre este assunto (surdez) para crianças. É raro... As pessoas não conseguem falar deste assunto. É difícil. 

O engraçado é que eu percebi que pessoas que não tinham relação com o tema, como professores, ou pessoas que nunca tinham trabalhado com deficiência auditiva, começaram a se interessar sobre o tema também. O livro tem uma abordagem diferente; ele fala sobre deficiência auditiva entre crianças sem colocar nenhum pesar, mas sim mostrando a consequência. Como a personagem não consegue ouvir o mundo ao seu redor, eu nem entrei na questão da linguagem. A personagem lê lábios, mas não quer dizer que ela não possa fazer uso da língua de sinais também. 

Pelo que eu entendo do seu relato, seu livro conseguiu ultrapassar barreiras e ser uma ferramenta também de inclusão, lido não apenas por crianças que são surdas ou possuem deficiência auditiva. 

Inicialmente era um livro para crianças, só para elas, para quem passa pela mesma situação que eu passei. Porém, ainda durante a fase inicial, quando era apenas um projeto, eu recebi pedidos de pessoas que queriam mandar o livro para escolas... professores, pedagogos, mães com e sem filhos com deficiência auditiva, pois o livro tem uma linguagem que fascina qualquer criança. 

No ano passado, a empresa Facebook resolveu dar meu livro para filhos dos funcionários e organizou uma roda de leitura com crianças... média de cinco anos. As crianças ouviram a história atentas até o final, prestando atenção. Perguntei qual a parte que tinham mais gostado e elas me contaram que foi quando a personagem cai na bolha de silêncio e depois, quando ela sai... porque tem uma emoção naquilo; elas se envolvem na história. É uma história para todas as crianças. Elas nem têm uma capacidade de entender a complexidade do tema, mas entendem que a personagem teve um problema e que, ao conseguir sair, tem uma solução.

 Foto: Ricardo Durant 

E para você, qual foi sua solução quando você perdeu a audição aos nove anos? Qual sua primeira sensação? 

A primeira sensação foi que eu descobri que conseguia ler lábios. Isso facilitava muito a minha vida. A primeira solução que eu achei foi a leitura. Quando eu perdi a audição, eu descobri que ler era a maneira mais rápida de interagir com o mundo, então eu comecei a ler. Comecei com revistas em quadrinhos. Aos doze anos, lia livros de quinhentas páginas com a facilidade de qualquer adulto. E qual a consequência disso? Você aprende a escrever bem. Todo mundo que lê muito, escreve bem. 

E como foi sair da “bolha de silêncio” aos trinta e dois anos?

Acho que foi muito mais difícil sair do que entrar, porque, quando eu saí da bolha, já tinham se passado vinte e cinco anos. Eu fiz o primeiro implante aos trinta e dois anos, do lado esquerdo, mas não funcionou cem por cento. Eu conseguia ouvir, mas não entendia o que as pessoas falavam, pois a parte interna do meu ouvido tinha sido também danificada. 

Depois de três anos, fiz implante no lado direito e funcionou. Em dez dias, eu conseguia entender o que as pessoas falavam. Eu comecei entendendo uma palavra; no outro dia, uma frase; depois uma música... Parecia que eu tinha ganhado na loteria de tão feliz que eu fiquei, até que um dia eu parei e pensei “anos da minha vida tinham se passado e eu não tinha ouvido durante estes vinte e cinco anos". Eu comecei a listar todos os momentos importantes da minha vida e eu não os tinha ouvido... Foi muito difícil, muito difícil mesmo... porque, aí, diferente de quando eu tinha nove anos, eu tinha idade para entender o que a perda da audição significava. Foi aí que eu pensei que as pessoas não precisam esperar vinte e cinco anos. Quero que elas tenham informação agora para que elas não tenham medo e não precisem esperar para sair da bolha, como eu esperei. 

Precisa de coragem para sair da bolha? 

Não é uma decisão fácil. E não é porque você vai passar por cirurgia, anestesia geral... A dificuldade está em você ter que reaprender as relações do dia a dia. Por exemplo, telefone tocando. Eu ouvia o telefone tocando e aquilo me irritava. Demorei uns dias para entender que eu precisava atendê-lo. Eu não sabia como deveria me comportar, pois eu não tinha aprendido este comportamento social padrão... como eu deveria atender e responder. Quando você abraça uma pessoa, você responde “bom dia”. Eu nem sabia que as pessoas falavam “bom dia” quando se abraçam; nunca tinha ouvido. Uma vez, eu estava no trabalho e minha colega que sentava do meu lado começou a discutir com o filho ao telefone. Eu comecei a ouvir e não sabia o que fazer. Pensei “será que ela sabe que eu estou ouvindo?”. Não sabia se tinha que interromper, se tinha que fazer alguma coisa... Eu tive uma crise de pânico e saí chorando da sala. Encontrei um colega e contei a história e disse a ele que eu não sabia o que fazer: “será que ela sabe que eu estou ouvindo?”. Aí que ele me disse que sim, ela sabia, e que, caso ela se importasse com isso, ela sairia da sala. Que eu não precisava ficar nervosa. Eu nunca tinha aprendido como me comportar em uma situação assim, nunca tinha vivido... Então, estas coisas assim, que estão relacionadas a não saber lidar com uma situação social dentro do padrão, é o que foi muito difícil para mim. 

O que contribuiu e o que não contribuiu para que você se sentisse integrada à sociedade? 

Informação é fundamental. É importante perguntar e entender. O que atrapalha na inclusão, na diversidade e respeito pelo outro é a vergonha de falar sobre o assunto. Muitas vezes, não falamos ou perguntamos por medo de errar. Temos que sair deste tabu. Melhor perguntar do que supor algo a respeito. Eu, por exemplo, não gosto quando isso acontece e me falam “você não consegue isso, então vou te colocar aqui”. Você não tem que supor nada, você precisa me perguntar. 

E quais são seus projetos futuros? 

Eu quero investir mais neste trabalho. Lancei, há pouco tempo, um caderno de atividades para as crianças poderem brincar com o personagem do livro. Quero fazer mais palestras, desenvolver cursos... Também tenho já quatro livros na pauta. Além de abordar mais sobre deficiência auditiva, quero falar também com outros públicos. Eu gosto muito do que eu faço, gosto de quebrar o medo que as pessoas têm de falar sobre um assunto e contribuir para mudar pontos de vistas sobre a deficiência.

Ser brasileira contribuiu nesta sua trajetória? 

Sim, de forma positiva e negativa. O povo brasileiro é muito aberto para receber informação. Gosta de falar, trocar e, socializar e esta abertura, contribuiu muito para que eu pudesse fazer o meu trabalho. Porém, por outro lado, no Brasil a deficiência ainda é vista muito como coisa de “coitadinho”, muito baseada em assistencialismo... Vamos dar coisas de graças para as pessoas, ao invés de promover que elas tenham oportunidades de trabalhar e ganhar o seu dinheiro. 

E qual o lado positivo do Brasil que mais te representa? 

A Alegria, esta vontade de compartilhar e celebrar! Somos um povo capaz de ser feliz mesmo com dificuldades. Eu gosto de comemorar. Continuo celebrando até hoje as coisas que eu passei a escutar. 

Você comentou, logo no início, que está de férias, descansando, e, por isso, tirou o aparelho. Ouvir também cansa? 

Qualquer estímulo cansa... Se você dorme em um quarto com TV ligada ou desligada é diferente. O estímulo faz o seu celebro prestar atenção.

Para saber mais sobre os projetos da Lak: https://desculpenaoouvi.com.br

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Beatriz Mello

Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.