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PAULO FREIRE: 100 ANOS

13/09/2021 Cristian Góes Educação

O ano de 2021 fez amanhecer o centenário de Paulo Freire, um educador e filósofo brasileiro reconhecido em todo mundo. Se fisicamente vivo, em 19 de setembro, ele completaria 100 anos. Contudo, o seu pensamento permanece mais vivo do que nunca e com uma atualidade desconcertante. Principalmente, neste período de distopia e de pandemia, em que a humanidade foi, mais nitidamente, colocada em risco. No seu centenário, Freire não é apenas atual, mas profundamente necessário.

Muitos conhecem a história e o pensamento do patrono da educação brasileira, um título conferido a Paulo Freire, em 2012. Entretanto, muitos mais não o conhecem, não leram as suas obras, não se dedicaram a pensar sensatamente sobre suas propostas. Muitos dizem conhecer por ouvir dizer e repetem frases descontextualizadas que teriam sido atribuídas a ele. Outros nem querem saber. Este é um quadro, curiosamente brasileiro, que gera análises superficiais, distorcidas e maldosas sobre ele e o seu pensamento.

É claro que, neste artigo, não é possível trazer tudo sobre Paulo Freire, um sujeito que produziu, ao mesmo tempo, uma práxis tão simples e tão complexa, que sua leitura é um oceano aberto e crescente de possibilidades. O objetivo, aqui, é lembrar, muito rapidamente, do seu centenário e, quem sabe, estimular a busca por se conhecer um pouco a mais sobre Freire – mais e melhor –, provocar a curiosidade para ler, de verdade, alguns dos seus trabalhos, e convidar a se estar aberto para refletir criticamente sobre o que ele propôs, tomando, não como verdade, mas como portas e janelas para outros entendimentos.

Desde cedo, o coração do jovem advogado Freire foi arrebatado pela educação. Fonte: Reprodução/ Instituto Paulo Freire.

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 1921, no Recife, Pernambuco, Nordeste brasileiro. Veio ao mundo em uma família de classe média baixa. Seu pai, um capitão da Polícia Militar, morreu quando o Paulo ainda tinha 13 anos. Sua mãe, dona Tudinha (Edeltrudes Freire), teve que sustentar sozinha os quatros filhos. Desde cedo, eles experimentaram as dificuldades de sobreviver dos mais pobres. Com imenso sacrifício, em 1943, Paulo ingressa na Faculdade de Direito do Recife.

Entretanto, o magistério falou mais alto ao coração daquele jovem advogado, que, desde criança, buscou ler o mundo antes de ler a palavra. Aos 23 anos casou com Elza, uma professora que viu em Paulo um extraordinário potencial como educador. Por influência da mãe, da companheira Elza e de um ambiente católico de perspectiva progressista, Freire se envolve em atividades de educação popular, da política dos leigos da Igreja, encarna-se nos movimentos de cultura, molha-se nas palafitas, nos morros, nas periferias do Recife.  

Em razão das profundas experiências de vida como e com os “esfarrapados do mundo”, em 1963, ele coordenou uma ação de alfabetização de trabalhadoras e trabalhadores rurais em Angicos, no Rio Grande no Norte. Esse trabalho foi um sucesso. Além de ensinar a ler e a escrever a mais de 300 pessoas em somente 40 horas, o método empregado por Freire fazia emergir, na superfície da história real, mulheres e homens conscientes, que procuram Ser Mais, lutando por seus direitos, desejosos de participar democraticamente da vida do país.

 

COMO SE APRENDIA A LER O MUNDO ANTES DA PALAVRA? 

O aprendizado se dava a partir das palavras do cotidiano ditas pelos próprios alunos, palavras rigorosamente escolhidas por eles, como faca, terra, cerca, água, seca, fome, amor, enxada e telha. Diante delas, os alunos rompiam um silenciamento colonial sobre a própria vida, estabelecendo-se um diálogo sobre as letras, as palavras, os sentidos do cotidiano, de modo que alunos e professores iam aprendendo juntos, comunicando-se sobre as suas condições de trabalho, saúde, lazer, sobre a esperança, a liberdade, os sonhos. As experiências de vida dos trabalhadores e o seu conhecimento do mundo eram parte fundamental do ato de educar, de aprender, de saber.

Freire foi um sujeito histórico, radicalmente humano. Fonte: Reprodução/ Instituto Paulo Freire.

Em razão da repercussão altamente positiva da ação em Angicos, município da região central do Rio Grande do Norte, Freire foi chamado pelo Governo João Goulart para implantar um trabalho semelhante em todo país, para montar mutirões de combate ao analfabetismo. Entretanto, a possibilidade de ensinar a ler e a escrever a milhões de pessoas, de contribuir para a emancipação humana de brasileiros pobres, provocou o pavor da elite nacional que, naquela altura, já estava preparando o golpe e a ditadura militar. Com a experiência de Angicos, Paulo Freire foi acusado de ser um perigosíssimo comunista, passando, então, a ser perseguido, preso e obrigado a deixar o Brasil, em outubro de 1964. 

Os golpistas imaginaram que Freire, com aquele método de alfabetização, objetivava desestabilizar os poderes constituídos, ao colocar, em curto prazo, uma grande quantidade de pessoas pobres em condições de votar, porque o voto, naquele tempo, era proibido aos analfabetos, o que poderia sensivelmente impactar nos currais eleitorais. Mas, principalmente – como avalia Sérgio Haddad (2019, p. 132) – a elite temia que os setores populares pudessem se tornar mais conscientes e críticos em seus destinos. Por isso, Paulo foi impedido de ser educador – banidos e deslegitimados, ele e seu método.

 

EXÍLIO E RETORNO AO BRASIL 

Paulo Freire viveu 16 anos no exílio. Passou pela Bolívia, Chile, Estados Unidos e Suíça, somente retornando ao Brasil em 1980, já internacionalmente reconhecido como um dos mais importantes educadores do mundo. No exílio, ele discute e aprofunda seu método; vai à África e acompanha a libertação das colônias portuguesas; amplia sua teoria, a partir de outras e variadas fontes; escreve várias obras, a exemplo da Pedagogia do Oprimido, de 1967. 

Ao retornar do exílio, Freire já era bem mais do que um simples educador, mas um extraordinário filósofo que elaborou toda uma teoria revolucionária sobre a idealização e a partilha do conhecimento e que tem, por tripé, a educação, a cultura e a comunicação, sempre para a emancipação do ser humano. Por isso, a elite brasileira jamais lhe deu trégua.

De retorno, Freire deu aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP). Em 1989, assumiu a secretaria municipal de Educação da maior cidade do país, São Paulo, atendendo ao convite da primeira mulher prefeita, Luíza Erundina. Seu mandato na secretaria teve, como marcas, a recuperação salarial dos professores, a revisão curricular e, é claro, o início da implantação de programas de alfabetização de jovens e adultos. Aqui, o tempo já era curto. Em 2 de maio de 1997, depois de ter sido internado para uma angioplastia, Freire morre por complicações de saúde.

Em vida e in memoriam, Paulo Freire recebeu 48 títulos de doutor honoris causa de diversas universidades no Brasil e no exterior, sendo convidado a ser professor em várias partes do mundo. Ele, também, recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais, a exemplo do Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento, na Bélgica, em 1980; Prêmio Unesco da Educação para a Paz, nos Estados Unidos, em 1986; Prêmio Andres Bello como Educador do Continente – da Organização do Estados Americanos (OEA), nos Estados Unidos, em 1992.

Hoje, são mais de 350 escolas espalhadas pelo Brasil e exterior que recebem seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, auditórios, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais. Paulo Freire inspiraria, ainda, inúmeras estátuas e pinturas, além de letras de músicas e até de sambas-enredo de escolas de samba. Foram criados vários prêmios e condecorações com seu nome e, em 1995, ele foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.

As obras de Paulo Freire espalharam-se pelo mundo em mais de 30 idiomas. Somente Pedagogia do Oprimido (1967) foi traduzida para mais de 20. Este livro apareceu em um estudo do professor Elliott Green, da London School of Economics, como a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas do mundo, à frente de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. Pedagogia do Oprimido é, também, o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados nas listas de leituras das universidades de língua inglesa. 

Pedagogia do Oprimido foi traduzido em mais de 20 idiomas. Fonte: Reprodução/ Instituto Paulo Freire.

 

ALGUÉM QUE AMOU PROFUNDAMENTE O MUNDO

Não, Paulo Freire não foi santo, não foi perfeito, mas um sujeito essencialmente humano e que viveu o seu tempo de forma intensamente encarnada, que amou agudamente o mundo e as pessoas, que cultivou, estimulou, propôs uma permanente crítica dialogada, respeitosa, amorosa, como um lugar necessário para a elevação do conhecimento coletivo. Paulo Freire foi um sujeito de radical escuta do Outro, mas com uma opção de vida claríssima: “os esfarrapados do mundo”, com vistas à conscientização, humanização e libertação.

Paulo realizou de modo pedagógico valores inteiramente humanos, com uma crença inabalável na capacidade do próprio humano em se educar, sendo ele partícipe da construção de um mundo melhor. Ele apostou no diálogo aberto como método para apreensão do conhecimento e o aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem amplamente ouvidos, que exprimissem suas ideias, suas interpretações de mundo, tudo isso como exercício democrático e de consolidação da autonomia dos próprios sujeitos. 

Para ele, todos tinham o que apresentar no diálogo, que deveria ser sempre crítico e criativo, gerador de conhecimento, assim, todos aprendiam com todos (Haddad, 2019). E diálogo em Paulo Freire implica dizer uma ação efetiva, crítica, respeitosa, amorosa, integralmente horizontal, mas sempre em espiral, aberta e sem hierarquias, um “encontro de homens para a ‘pronúncia’ do mundo” (Freire, 1982, p. 43). 

Freire e a crença inabalável em crianças livres, criativas e críticas. Fonte: Reprodução/ Instituto Paulo Freire.

Freire foi um pensador que sempre fez reconsiderações sobre as próprias ideias, que dialogava no sentido de aprender e repensar com o Outro, condição que impede que ele seja unanimidade. Neste sentido, é preciso ler e compreender Paulo Freire no seu tempo e espaço. Entretanto, mergulhando-se em sua produção intelectual, hoje, o que irá emergir é uma potente, intensa e universal força criativa que mantém intactos os princípios, as bases, os fundamentos do seu pensamento elaborados décadas atrás. O legado de Freire ainda é uma novidade extraordinária, necessária no tempo presente para entendermos quais os caminhos que precisamos percorrer.

Leia Paulo Freire. Paulo Freire vive. Paulofreire-se!

 

Paulo Freire: 17 livros para baixar em PDF (https://cpers.com.br/paulo-freire-17-livros-para-baixar-em-pdf/)

 

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, C. R. (1981). O que é o Método Paulo Freire. São Paulo, Brasiliense.

FREIRE, P. (1975). Pedagogia do Oprimido. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

FREIRE, P. (1976). Educação como prática de liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

FREIRE, P. (1982). Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 6 ed. RJ: Paz e Terra.

FREIRE, P. (1997). Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

HADDAD, S. (2019). Paulo Freire, o educador proibido de educar. In: CÁSSIO, F. Educação contra barbárie. São Paulo: Boitempo.

INSTITUTO PAULO FREIRE – www.paulofreire.org

 

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Cristian Góes

Jornalista. Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado sanduíche na Universidade do Minho, em Portugal. É mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Gestão Pública (FGV) e em Comunicação da Gestão de Crise (Gama Filho). cristiangoesdf@gmail.com