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O REINADO DE MORAES MOREIRA NA REAL FELICIDADE

01/05/2020 Felipe Tadeu Arte e Música

A semana tinha sido puxada, ou melhor dizendo, um saco! As aulas na Faculdade de Letras eram modorrentas demais, chegando ao cúmulo dos píncaros da impaciência nos sábados de manhã. De oito horas ao meio-dia, eu tinha que encarar dois tempos de Latim e um de Grego Antigo. Os professores que ministravam aquelas matérias já tinham uma idade avançada e não pareciam nada interessados em dar uma dinâmica mais empolgante para aqueles encontros involuntários. Sem exagero algum, a sensação que eu tinha como universitário era de que estava cursando Antropologia e um dia eu estaria na Mesopotâmia, fazendo fotos de ossadas de camelos albinos, descobertos numa escavação. Mas naquela vez o meu astral estava diferente ali em São Cristóvão. O motivo da metamorfose, para mim, estava bem claro: haveria naquele mesmo sábado de agosto um show imperdível! Na praia, de graça, Arpoador, como só lá no Farol da Barra, em Salvador da Bahia (que eu mal conhecia). Sim, um show. Do Moraes Moreira. 

 

Moraes na crista da onda da MPB - Reprodução trecho da entrevista para Revista VEJA (9 de fevereiro, 1983).  (Imagem: Felipe Tadeu).   

 

Margareth já tinha me telefonado. Ela ia com o namorado e fazia questão que eu estivesse junto. Ela era uma amiga baiana, meio “hippinha”, que morava no Leme e com quem eu me entendia muito bem. Eu iria, claro, mesmo que fosse a pé da Tijuca ao Arpoador. Subiria o Alto da Boa Vista, pegaria a estrada do Sumaré, caindo no Jardim Botânico, de onde já dava para sentir a maresia que chegava da praia de Ipanema. Sim, eu poderia subir o Alto com a mesma euforia de quem pega ladeira acima pulando atrás de um trio-elétrico, como Margareth me contava que fazia e eu ficava doido só de imaginar. No Rio de Janeiro não tinha trio-elétrico.

A primeira página do Caderno B do Jornal do Brasil já tinha ateado meu fogo, excitando os fãs de Moraes, que o curtiam desde os tempos em que ele era um dos Novos Baianos. Aliás, eu nunca havia visto um concerto sequer desse grupo lunático que vinha da terra de Dorival Caymmi para a minha cidade, aterrizando em Vargem Grande e lá ocupando o sítio do Cantinho da Vovó. A cidade em que eu vivia era o Rio de Janeiro, o mais bonito do mundo; um lugar vocacionado para a festa e para o lazer. Também nesse ponto, o Rio era bem parecido com a Bahia, de onde vinha o tal Moraes Moreira, de Ituaçu.

Os hippies brasileiros que pareciam ser os mais autênticos eram os baianos, seguidos bem de perto pelos mineiros, que eram “zen-budismo” puro. Sobre o conjunto dos Novos Baianos, eu, cá pra nós, tinha uma opinião que poderia ser considerada por alguns uma verdadeira heresia: eu gostava ainda mais dos rumos musicais que Moraes Moreira tomara depois de sair em carreira solo. Moraes cresceu muito, seu violão cheio de magnetismo, ficou mais desenvolto; ele começou a cantar bem melhor, compondo com outros letristas que lhe apareciam naquela época: Abel Silva, Fausto Nilo, Antônio Risério, Capinam e até o Chacal, poeta da Nuvem Cigana, dentre outros.

Naquele sábado, passei pela Faculdade, assisti mais animado aos ensinamentos mais rudimentares do Latim e do Grego Antigo, com o professor nos alertando que na prova teríamos que ler um trecho da bíblia publicada na Grécia e vertê-lo para o português.  Ó Santo Moraes Moreira, ó inquestionável mestre dos dionisíacos cariocas, me ajude! Pois bem, depois das aulas, me encontrei com um amigo da Tijuca e zarpamos para o Arpoador de ônibus, saltando no Posto Seis, no finalzinho de Copacabana, e de lá seguindo para o local do show daquele artista que estava numa fase brilhante de sua profissão, depois de ter lançado o LP “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira”, o seu melhor disco. Paramos num botequim da rua Francisco Otaviano para matar a sede e ressuscitar o melhor da vida com umas cervejinhas estupidamente geladas, fundamentais para depois ver as tribos dos quatro cantos da cidade, aquelas que cultuavam como eu as maravilhas da música brasileira. Era um grande barato ver show de música ao ar livre, com um monte de gente. 

Colado na pedra do Arpoador, ali do lado da velha loja dos Correios,estava o palco, um lugar emblemático para quem também se amarrava em surf. Ali, naquele pedaço da praia, vinha acontecendo diversos campeonatos incríveis, com muitos dos melhores surfistas brasileiros, como Daniel Friedman, Cauli, Pepê, Rico e Petit, o tal “menino do Rio” homenageado por Caetano Veloso em uma de suas canções mais fascinantes, da mesma safra irresistível de “Leãozinho”, esta dedicada por Caê a um novo-baiano como era Moraes, o Dadi da Cor do Som.

show de Moraes Moreira marcava o lançamento de “Bazar Brasileiro”. O lugar estava apinhado de jovens, muitas “minas” e carinhas de cabelo parafinado, um público bem misturado, juventude bonita demais. Esbarramos com Margareth e o namorado dela, que tinha nome de um ex-presidente dos Estados Unidos, e lá Margareth nos lembrou que naquele dia iria acontecer algo muito especial:  um eclipse solar. Durante o show, meu irmão! Uau! Eu sou um verdadeiro “cabecinha”! Como eu poderia ter me esquecido disso?

 

 

Capa do sexto disco da carreira-solo. Design em sintonia com a estética interiorana do Brasil; por João, Bob e Aderi  (Foto: Felipe Tadeu).

 

Quando Moraes Moreira chegou ao palco, estávamos os quatro amigos sentados no morro que ficava ali em frente. Milhares de pessoas num astral lindo, que parecia um sonho, na boa. Moraes subiu ao palco com a mesma banda que gravara o novo disco, que eu ainda não conhecia: Toni Costa na guitarra, Oswaldinho do Acordeão e Zeca Barreto nos vocais, Guilherme Maia na bateria e percussão, Aroldo no baixo e um naipe de metais. E Moraes começou a cantar...“Forró do ABC”, parceria dele com Patinhas; “Que Papo é Esse?”, com letra de Capinam e Fausto Nilo; “Pessoal do Aló” (Moraes e Antonio Risério); “Cabeleira de Berenice” (Moraes e Waly Salomão); “Tapioca de Olinda”, letra e melodia do próprio músico, e até uma do filho, o garoto Davi Moraes, que já tocava guitarrinha baiana, o bandolim eletrificado do Trio Elétrico de Dodô e Osmar, que, nas mãos de Armandinho Macedo, era como a Fender Stratocaster de Jimi Hendrix. O nome do tema instrumental de Davi era “Todos Nós”. 

Moraes Moreira estava radiante. O povo não menos, com frevo, rock, afoxé e baião. A malucada da plateia ouvia as novas composições do artista, mirando o astro-rei lá no céu com certo cuidado porque, como Moraes repetia toda hora no microfone, olhar o sol diretamente naquela tarde poderia causar danos aos olhos das pessoas. Muitos espectadores sabiam disso e tinham levado negativos de filmes fotográficos, que poderiam servir como filtros, na hora de mirarem com encantamento o eclipse que estava prestes a acontecer. Todo mundo por ali também conhecia aquela canção de Raul Seixas que dizia que quem não tem colírio usa óculos escuros. 

E assim foi, acredite quem quiser. Moraes Moreira cantando todas de o “Bazar Brasileiro”: a “Grito de Guerra” (Toni Costa, Moraes e Risério); a belíssima “Meninas do Brasil”, que, na letra de Fausto Nilo, homenageava as mulheres brasileiras das três etnias formadoras da nossa gente, e também “Meninos do Brasil”, com texto do habilidoso poeta Abel Silva. Coroando o repertório, vinha a parceria de Moraes com Jorge Mautner, a “Lenda do Pégaso”, que era como um conto infantil da mente cheia de fantasias do violinista da contracultura, o festejado autor de “Maracatu Atômico” (com Nelson Jacobina). 

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.