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O QUE HÁ EM COMUM ENTRE A LITERATURA RUSSA E UM BRASILEIRO? O TRADUTOR IRINEU FRANCO PERPETUO.

16/08/2021 Mazé Torquato Chotil Literatura e Leitura

Jornalista, escritor e tradutor, Irineu Franco Perpetuo (1971) acaba de lançar dois livros: a tradução de Anna Kariênina, de Tolstói (1828-1910) e Como Ler os Russos, de sua autoria. Como jornalista especializado na área cultural, trabalhou cobrindo música erudita para o Jornal Folha de São Paulo e a revista Ópera Actual, de Barcelona, além de outros veículos de comunicação. Atualmente colabora nesta área para a revista Concerto.

Apaixonado por línguas, aprendeu o italiano no colégio, o espanhol de forma autodidata e o inglês, francês, alemão e russo em escolas de línguas em São Paulo, cidade onde nasceu e vive. Terminou unindo as paixões em 2006, quando publicou a tradução de Pequenas tragédias de Aleksander Púchkin (1799-1837), livro que integra Mozart e Salieri, peça que inaugurou o mito da rivalidade entre os dois compositores. 

Depois desse primeiro trabalho, outras 14 obras foram traduzidas: Boris Godunov, A Filha do Capitão e A Dama de Espadas, de Púchkin (1799-1837); Memórias de um Caçador, de Ivan Turguêniev (1818-1882); Vida e Destino e A Estrada de Vassíli Grossman (1905-1964); A Morte de Ivan Ilitch e Anna Kariênina, de Lev Tolstói (1828-1910); Memórias do Subsolo, O Eterno Marido e Gente Pobre, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881); O Mestre e Margarida e Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov (1891-1940); e Lasca, de Vladímir Zazúbrin (1895-1937).

Em entrevista para o blog BRmais, Irineu compartilha seu ofício de tradutor e sua paixão pela Literatura Russa, além de nos convidar a conhecer grandes obras que influenciaram a nossa Literatura Brasileira, sem necessariamente saber russo.

 

Capa do livro Anna Kariênina, de Lev Tolstói. Tradução de Irineu Franco Perpétuo. Fonte: site Editora 34.

 

SOBRE LITERATURA RUSSA

Por que, após 15 traduções de literatura russa, escreveu o livro Como ler os russos? Como surgiu a ideia? É uma espécie de roteiro para a leitura de autores russos? 

Eu sou como um taxista que vai para onde o cliente manda. O livro foi uma ideia de André Conti, da Todavia. Ele queria algo que fosse como um guia para o leitor não-especializado, interessado na literatura russa. 

Qual a importância da leitura dos clássicos russos na atualidade?

A literatura russa me parece tão inescapável como, digamos, o repertório sinfônico austro-germânico, o cinema francês, as artes plásticas italianas, a música popular das Américas. São fenômenos tão constitutivos da nossa identidade cultural que é até difícil explicar sua importância. 

Existem entraves para uma leitura e interpretação apropriadas da literatura russa? Se sim quais?

A ampla difusão da literatura russa no Brasil há mais de um século mostra que ela é plenamente acessível a quem nunca foi à Rússia e não fala uma palavra do idioma.

Capa do livro Como Ler os russos, de Irineu Franco Perpétuo.  Fonte: site Editora Todavia. 

 

INFLUÊNCIAS NA LITERATURA BRASILEIRA

Há alguma semelhança entre as literaturas brasileira e russa?

Há semelhanças desconcertantes e difíceis de explicar, como entre as novelas Enfermaria No 6, de Tchékhov e O Alienista, de Machado de Assis, que exploram o mesmo tema com brilhantismo, sem que um autor tivesse lido o outro. Em geral, a literatura russa vem influenciando a literatura brasileira há pelo menos um século. Nossa literatura regional tem matiz gorkiano. Nomes importantes como Lima Barreto e Carlos Drummond de Andrade eram admiradores dos russos, e é difícil entender nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, sem passar por Dostoiévski.

Quais são os autores mais conhecidos dos brasileiros?

Tolstói e Dostoiévski, sem dúvida. O teatro brasileiro também é bastante influenciado pelo russo e, por causa disso, Tchékhov também tem difusão por aqui.

Quais as obras que você recomenda para o leitor que ainda não leu nenhum clássico russo?

Se os nomes mais conhecidos são Tolstói e Dostoiévski, talvez o mais recomendável seja conhecer algo desses autores. Obviamente, não vou pedir para ninguém começar por um romance caudaloso de mil páginas. Ambos têm contos e novelas de qualidade. No caso de Tolstói, talvez A Morte de Ivan Ilitch ou Sonata Kreutzer. No de Dostoiévski, Memórias do Subsolo, Um Jogador, O Eterno Marido, ou Noites Brancas. Há também os contos de Tchékhov (como A Dama com o Cachorrinho), ou as peças do mesmo autor (como O Tio Vânia). Ou a deliciosa prosa curta de Gógol – O Capote, O Nariz.

Você traduziu importantes obras, sobretudo do século XIX, por que este período?

Porque as editoras me encomendaram mais traduções de obras deste período. O século XIX foi o período do surgimento internacional da literatura russa, então os nomes mais conhecidos são mesmo dessa época.

 

A ARTE DE TRADUZIR

Como vai a literatura russa contemporânea? Quais os autores que admira? E quais os que gostaria de traduzir? 

Escritoras russas têm conquistado importante visibilidade no cenário da literatura do país atualmente. Pode nos falar um pouco mais do fenômeno?

Essas duas eu respondo juntas, porque a literatura russa contemporânea vai muito bem, inclusive com alguns nomes que já vieram ao Brasil, como Vladímir Sorókin, Liudmila Petruchévskaia e o último Nobel de Literatura da língua russa, Svetlana Aleksiévitch. As primeiras escritoras russas conhecidas no Ocidente foram duas das maiores poetas do século XX, Marina Tsvetáieva e Anna Akhmátova, e as mulheres são responsáveis por boa parte do vigor da literatura russa atual. A Editora 34 está prestes a publicar uma tradução que fiz de minha escritora contemporânea favorita: o livro Meninas, de Liudmila Ulítskaia.

Qual é sua relação com o país dos autores que traduz?

Não tenho sangue russo, mas já viajei para lá algumas vezes, e procuro estar em constante contato com a cultura da Rússia. Pois o trabalho de tradutor não é apenas de versão de texto, e sim de intermediador de contextos culturais.

Como uma obra deve ser traduzida? O que deve ser respeitado, adaptado? Ou seja, qual é a sua visão de uma boa tradução?

Eu trabalho com tradução literária, o que é algo diferente da tradução técnica de um manual de geladeira ou de um contrato jurídico. Tradução literária é um processo artístico. Então, se a precisão semântica é bastante importante, não tem menor relevância a questão estilística. Por vezes, o tradutor pode/deve ser infiel à letra para ser fiel ao seu espírito – cometer uma infidelidade em um nível para ser fiel em outro.

 

OS DESAFIOS DA TRADUÇÃO

Fale-nos das dificuldades em traduzir uma obra de 864 páginas. Anna Kariênina de Tolstói é uma das mais belas histórias de amor, segundo Vladímir Nabókov, que se passa num tempo longe do nosso.

Eu traduzi também Guerra e Paz, de Tolstói, que é ainda maior (essa tradução ainda está para ser publicada pela Editora 34). A própria extensão de um livro desses já é uma dificuldade. Você não pode perder o foco, o interesse, a concentração. Livros assim grandes normalmente mobilizam uma grande quantidade de campos semânticos, e meu conhecimento desses campos está longe de ter a amplitude do autor da obra. Assim, não é raro que eu recorra a especialistas de determinadas áreas que não falam uma palavra de russo, para pedir o esclarecimento de termos específicos. Então é a um amigo médico que pergunto sobre termos da medicina; a um figurinista de ópera indago a respeito de peças de vestuário do século XIX; a um arquiteto sobre um pedaço de uma casa; a uma patinadora no gelo sobre as palavras dessa modalidade etc. Quanto maior a distância no tempo e no espaço que o texto tem do leitor ao qual é destinado, maior a dificuldade de tradução. Suponho que, assim, Anna Kariênina não seja tão difícil de traduzir como um texto sumério da Antiguidade, mas seja menos simples do que uma obra americana do século XXI, por exemplo. 

 

POESIA, O GÊNERO MENOS TRADUZIDO DO RUSSO PARA O PORTUGUÊS

Quais autores russos ainda não foram traduzidos e você pensa que deveriam ser? 

Devido às dificuldades intrínsecas do gênero, a poesia é a maior lacuna de recepção da literatura russa no Brasil. Os irmãos Haroldo e Augusto de Campos fizeram um trabalho extraordinário nesse sentido, em parceria com Boris Schnaiderman, mas seria desejável que mais tradutores seguissem o exemplo deles.

Para finalizar, qual gênero literário lhe dá mais satisfação em traduzir? Romance, Poesia, Dramaturgia...?

Meu campo de trabalho é a prosa. Poesia, sozinho, eu não arrisco. Acho que tem que ser poeta para traduzir. Agora estou experimentando, com o também tradutor e poeta Guilherme Gontijo Flores, o exercício de traduzir a quatro mãos a poesia de Joseph Brodsky. Está sendo muito interessante. 

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.