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O milho, o amendoim e os três santos

29/06/2019 Sabrina Galli Raízes Culturais

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Amendoim e Paçoca.  Foto: Sabrina Galli

Nada mais coerente do que falar de Festa Junina no mês de junho. Mas esta festa, que aquece o coração de qualquer brasileiro, tem raízes tão profundas na nossa cultura que explicá-la não é simples como parece. 

Ao pensar em “festa junina”, pipoca na mente uma série de palavras, como que disputando atenção, como se cada uma fosse mais importante do que a outra, na tentativa de explicar ou definir a festa. Milho, calça remendada, quentão, fogueira, dança, amendoim, bigode, São João, mandioca, sanfona, rojão, roça, noiva, balão, chapéu de palha, bandeirinha, vestido rendado, terço... E mesmo que a gente não entenda muito bem a relação entre elas, existe em todo brasileiro a certeza de que todas estas palavras fazem sentido juntas. Simplesmente porque sempre foi assim.

 

“Não sei, só sei que foi assim.” 

(Chicó, personagem de “Auto da Compadecida”, livro de Ariano Suassuna)

 

É estranho, mas não costumamos questionar aquilo que sempre existiu. É como pergunta de criança, daquele tipo que pega os pais desprevenidos: “por que o céu é azul?”, “por que fevereiro tem 28 dias?”. Mesmo que seja grande a vontade de responder “porque sim”, a realidade é que é muito mais interessante compreender as coisas que nos rodeiam. Dar significado ao que já nos é familiar dá ainda mais sentido aos nossos atos, à nossa vida. 

E a Festa Junina é uma dessas comemorações que muita gente não sabe bem de onde veio ou porque existe e, ainda assim, conhece todos os seus elementos, todo o seu roteiro, todos os aromas, as cores, as rezas, os sabores, as músicas. 

Para podermos entender o conceito de Festa Junina, vamos começar relembrando que o Solstício é um evento astronômico que ocorre duas vezes ao ano, marcando o início do verão, em um hemisfério, e do inverno, no outro. O solstício de verão é o dia em que o Sol atinge seu ponto mais alto no céu, fazendo com que aquele seja o dia mais longo do ano e, portanto, a noite mais curta (ele ocorre em dezembro no hemisfério Sul e em junho no hemisfério Norte). Da mesma maneira, o solstício de inverno é quando o Sol atinge seu ponto mais baixo no céu, ocorrendo, assim, o dia mais curto e a noite mais longa do ano (ele ocorre em dezembro, no hemisfério Norte, e em junho, no hemisfério Sul). 

Daí que os solstícios de verão e de inverno sempre representaram marcadores importantes, ao redor dos quais girava o calendário de colheita e de plantio dos povos, desde a Antiguidade. Rituais e celebrações pagãs eram realizados durante o solstício de verão com o objetivo de garantir o sucesso da próxima colheita, com danças, cantos, sacrifícios de animais, oferendas de alimentos e fogueiras que mantinham afastados os maus espíritos. Essas celebrações ligadas à fertilidade e à agricultura aconteciam no mês de junho e marcavam o início do verão no hemisfério Norte. 

Com o tempo, a Igreja Católica se apropriou dessas comemorações milenares, conferindo um caráter religioso à festa. Foi então que o dia 24 de junho passou a ser celebrado o Dia de São João Batista, o precursor de Jesus Cristo, e a fogueira daquelas celebrações passou a representar o seu nascimento. De acordo com a crença popular, Isabel, grávida de João, prometeu à Maria, sua prima, avisá-la do nascimento de seu filho, erguendo um mastro e acendendo uma fogueira para chamar-lhe a atenção. Eventualmente, dois outros santos passaram a ser comemorados na mesma festa, mas nos dias de suas mortes: Santo Antônio, no dia 13, e São Pedro, no dia 29.

No século XVI, os jesuítas, trazidos pelos portugueses para evangelizar e “civilizar” os povos nativos do Brasil, passaram a ensinar a tradição católica aos indígenas, seus santos e suas datas importantes. Entre elas, as festas juninas. Mas os indígenas também faziam celebrações ritualísticas no mês de junho, acompanhadas de dança, comida e fogueira, e ligadas aos alimentos nativos do território brasileiro, como amendoim, milho e mandioca. 

Ingredientes que vieram com os europeus – o gengibre, o cravo, a canela, a farinha de trigo, o coco e a cana-de-açúcar (com seu açúcar, rapadura e cachaça) – foram aos poucos sendo combinados com os daqui e passaram a fazer parte do cardápio da festa. 

Em um Brasil ainda em formação, com grande parte da população habitando a roça, os balões eram usados como meio de comunicação, superando a distância e avisando às pessoas o início da festa, além de serem também portadores de pedidos de graças a São João. Devido aos grandes incêndios provocados, foram proibidos no Brasil em 1998. 

A quadrilha, outro símbolo importante das comemorações juninas, entrou para a festa mais tarde. De origem nobre, essa dança foi trazida ao Brasil pela corte portuguesa e, de início, era apreciada pela camada mais abastada da população. Seu nome vem do francês “quadrille” e significa “quadrado”, pois os casais se posicionam em duas filas, uma de frente à outra. Com o tempo, foi se popularizando, fazendo a transição da corte à paisagem urbana (popularizando-se entre a burguesia) e, por fim, à cena rural, dançada pela população do interior, quando já estava distante da cena urbana e “fora de moda”.

 

“Até o presente, os dançarinos de quadrilha fantasiam-se de ‘rurais’ de uma forma pejorativa e caricatural.” 

(Luciana de Oliveira Chianca)

 

Esses toques caricaturais na fantasia do caipira são representativos do morador do campo e seu modo de vida. As roupas são simples, calça e camisa xadrez para os homens e vestidos de renda para as mulheres, feitos de tecido barato e com alguns retalhos costurados como se fossem remendos, fazendo alusão à precariedade de recursos. As estampas são sempre vivas, indicando o gosto caipira por cores alegres em ocasiões festivas, e nunca combinam. Chapéu de palha para os homens e para as mulheres, mas elas ainda levam longas trancinhas (próprias ou postiças) penduradas de cada lado do rosto, saindo de baixo do chapéu. 

Para reforçar o estereótipo do caipira retratado nesse enredo junino, a maquiagem tem um papel fundamental: dentes pintados de preto, simulando a falta deles, em homens e em mulheres. Eles também pintam bigodes falsos e elas ainda têm as bochechas bem marcadas de rosa com pintinhas feitas sobre a maçã do rosto, imitando sardas. 

E sendo um dos eventos mais importantes na vida do campo, o casamento passou a ser encenado como parte da festa e a quadrilha se tornou o baile que acontece logo em seguida à celebração do matrimônio. 

Durante o festejo, é encenado o casamento da roça um pouco conturbado, composto pelos seguintes personagens principais: a noiva, seu pai, o noivo, o juiz de paz e o delegado. De acordo com o enredo, a noiva engravida antes do casamento, o noivo tenta fugir do compromisso e o pai da noiva o força a se casar na presença do juiz de paz e do delegado de polícia, que está ali para evitar nova fuga. 

Apesar da conotação machista da história, tudo é interpretado com muito humor, ironia e o inconfundível sotaque do interior (que tem o R “retroflexo”, ou caipira, resultado da dificuldade que os índios tinham em pronunciar o R dos colonizadores portugueses). Depois da encenação, o mestre de cerimônias conduz, com uma fala animada, a coreografia do baile do casamento, usando palavras que demonstram a origem francesa da dança, como “balancê” (balancer), “returnê” (retourner) ou “anavan” (en avant). Sob o som da sanfona, os personagens principais e seus convidados dançam a quadrilha, apreciados pelo público da festa. 

E, para decorar tamanho acontecimento, não podem faltar um belo mastro e as bandeirinhas, que carregam um motivo religioso por trás: as imagens dos santos são estampadas em bandeiras coloridas para ficarem expostas durante as festas, o que acabou originando as bandeirinhas pequenas, penduradas em linha e usadas para decorar e identificar uma festa junina. 

Para resumir, uma boa festa junina deve seguir um pequeno roteiro (que pode, claro, ter alterações de acordo com a região ou com as tradições da família que o realiza). Decorado o salão, deve-se reunir a família e os amigos, acender a fogueira, rezar o terço, soltar rojões (para acordar São João, de acordo com a crença), levantar o mastro com as bandeiras dos santos. Então, começa a festança, com o casamento caipira, a quadrilha, muitas comidas e muitas bebidas quentes para aquecer o corpo durante o clima frio do mês de junho (solstício de inverno, aqui no hemisfério Sul). 

Certamente, as comidas típicas variam de acordo com a região do país, assim como algumas brincadeiras, tradições e danças (o forró é muito dançado nas Festas Juninas no Nordeste, por exemplo). Mas um cardápio típico costuma ter milho cozido, paçoca de amendoim, pé de moleque, bolo de macaxeira, doce de leite, amendoim cozido, broa de fubá, biscoito de polvilho, bolo de milho, mandioca cozida, vinho quente (temperado com canela, cravo e pedaços de frutas), quentão (bebida quente, daí seu nome, feita com cachaça, açúcar, gengibre, cravo e canela), batata doce assada, cocada, pamonha, pipoca, canjica (conhecida assim no Sudeste; no Nordeste é mungunzá), doce de abóbora, pão de queijo (principalmente em Minas Gerais), bolo Souza Leão (típico nas festas juninas de Pernambuco), tacacá (na região Norte), pinhão (na região Sul).

Para fechar, uma receita bem fácil de fazer, para começar a entrar no clima da festa: 

PAÇOCA DOCE DE AMENDOIM 

1 xícara de amendoim torrado sem pele e sem sal 

¼ xícara de farinha de milho ou de mandioca 

2/3 xícara de açúcar mascavo ou rapadura ralada 

1 pitada de sal 

Coloque o amendoim em um processador e bata até obter uma farofa. Misture os outros ingredientes e bata novamente. Faça isso aos poucos, mexendo de vez em quando, até que a farofa comece a ficar ligeiramente úmida (pela mistura da gordura do amendoim com os outros ingredientes). Retire a farofa do processador e sirva, assim, soltinha. Ou continue batendo no processador até que fique mais úmida (pode adicionar 1 colher (sopa) de manteiga derretida, ou água, se quiser). Então, coloque-a em uma assadeira baixa e aperte-a com as costas de uma colher, compactando-a bem. Leve à geladeira e depois corte para servi-la em retângulos. 

 

REFERÊNCIAS

CHIANCA, L. Quando o campo está na cidade: migração, identidade e festa. Sociedade e Cultura, v. 10, n. 1, 5 dez. 2007. Disponível em < https://doi.org/10.5216/sec.v10i1.1722 >. Acessado em 9 junho 2019.

https://super.abril.com.br/cultura/sotaques-do-brasil/

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-surgiram-as-festas-juninas/

http://www.lejf.org.br/pontodecultura/2012/06/quadrilha-junina/

https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/solstício/

http://cnbb.org.br/24-de-junho-dia-de-sao-joao-batista-o-precursor-de-jesus-cristo/

https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104091/lei-de-crimes-ambientais-lei-9605-98#art-42

http://www.cnbb.org.br/santo-antonio-a-devocao-brasileira-ao-santo-portugues-que-dedicou-a-vida-a-caridade/

http://www.ebc.com.br/cultura/2013/06/conheca-os-santos-das-festas-juninas

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Sabrina Galli

Bacharel em Letras - Tradução Francês e Italiano -, concluiu o curso tecnológico de Gastronomia e se especializou em Didática do Ensino Superior. Amante do universo dos idiomas e da culinária, transita de um polo a outro, estabelecendo uma ponte entre as palavras e a comida. Já foi chef de restaurantes em Maceió e BH, tradutora de uma coleção de livros da cozinha italiana, organizadora e consultora gastronômica e idealizadora da edição única d’A Feira. Atualmente, é docente no curso de Gastronomia da Faculdade Barão de Mauá e também ministra disciplinas práticas de Cozinha Europeia e das Américas, Cozinha Asiática e a disciplina teórica Terminologia Gastronômica em Francês.