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Monteiro Lobato: "Um país se faz com homens e livros"

06/02/2018 Vanete Santana-Dezmann Literatura e Leitura

 

O livro Aventuras de Hans Staden, de Monteiro Lobato.  Foto: Vanete Santana-Dezmann.

 

Monteiro Lobato já era escritor reconhecido, tradutor e editor quando, em 1925, em sociedade com Octales Marcondes, fundou a Companhia Editora Nacional, cuja primeira publicação foi Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil – uma versão modernizada feita pelo próprio Lobato da primeira parte do livro Warhaftige Historia (Verdadeira História), publicado em 1557 em Marburg por Hans Staden, um viajante que esteve duas vezes em terras que viriam a constituir o Brasil. 

Em 1927, vem a público Aventuras de Hans Staden, uma história infantil escrita por Lobato com base na história contada por Staden e narrada a partir da óptica de D. Benta, personagem criada em 1920 como avó de Narizinho. A partir de então, seu trabalho de criação literária baseada ou inspirada em obras produzidas em outros idiomas e culturas se torna tão importante quanto a direção de sua editora, a produção de artigos para jornais e revistas e a edição de livros próprios e de outros autores. 

Da crítica às traduções das histórias para crianças publicadas no Brasil por seus antecessores, advém-lhe a ideia de produzir literatura infantil. De acordo com Lobato, as fábulas traduzidas para o português eram “pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis”. Sua intenção era criar fábulas com animais genuinamente brasileiros, iniciando, assim, uma literatura infantil brasileira. 

Seu descontentamento com as traduções de obras infantis o acompanharia por anos. Os contos dos irmãos Grimm editados no Brasil pela Garnier, por exemplo, mereceram sua crítica por se apresentarem em português europeu – era preciso “abrasileirar a linguagem”, dizia Lobato. Neste sentido, pode-se considerar que ele trabalhou pelo enriquecimento da literatura infantil brasileira e pela aceitação da modalidade do português falado no Brasil mais do que qualquer outro editor ou escritor. Ele resolveu investir nesta área ao constatar não apenas a má qualidade das traduções das histórias infantis, mas também a carência de obras para crianças apresentada pelo mercado editorial nacional, no qual não encontrava livros para seus próprios filhos. Sua primeira ideia, então, foi “vestir à nacional” as velhas fábulas de Esopo e de La Fontaine. 

Posteriormente, teve a ideia de publicar, reescritas em linguagem mais leve, as histórias infantis que já haviam sido traduzidas por Jansen Müler – Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do celebérrimo Barão de Münchhausen (1891) e Don Quixote de La Mancha (1901). Assim, indo além das fábulas, Lobato constituiu o cânone da literatura infantil brasileira, enriquecendo-a por obras de diversas culturas. Por vezes, como se pode perceber, o que ele fez foi recontar segundo sua ideologia e senso estético – e não apenas sua concepção de literatura infantil – textos já traduzidos. 

Do mesmo modo que criticava a visão sobre o que se identificava como Brasil expressa por estrangeiros, conforme se vê em sua versão de Staden para o público infantil, Lobato também criticava a perspectiva francesa da literatura brasileira – o padrão, em termos artísticos, no século XIX. Ao mesmo tempo, seguindo uma tradição histórica, propugnava a fusão do que havia de melhor na literatura universal em termos de forma e conteúdo, para fortalecer e enriquecer a literatura nacional, criando-se, a partir da assimilação do estrangeiro, uma literatura autenticamente brasileira – até o ponto em que a autenticidade em literatura é possível –, ao transportar para o Brasil uma prática comum e milenar voltada para a construção de culturas nacionais. É neste sentido que, por exemplo, propõe novas traduções de obras já publicadas em português e o abandono do modelo francês – “literarizante”, segundo sua concepção – em favor de uma literatura com caracteres nacionais e expressa em português brasileiro, fluente e compreensível, sobretudo nas obras destinadas ao público infantil. Encomenda, então, contos extraídos de peças de William Shakespeare, tal como Rei Lear, e uma versão brasileira de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – tudo escrito para leitores como seu filho Nelo e os demais “nelos” do Brasil; sua preocupação com a adequação da linguagem ao português brasileiro e ao público infantil era constante. Posteriormente, seleciona obras mais abrangentes em termos culturais, disponibilizando às crianças brasileiras um pouco mais do cânone da literatura universal: além de Shakespeare e Cervantes, interessavam-lhe Jonathan Swift e Daniel Defoe.

Suas preocupações com a linguagem e o cânone, porém, eram antigas; ele não poupava críticas ao mercado editorial brasileiro, que errava tanto na escolha dos títulos a serem publicados quanto na linguagem – conforme continuou criticando – e se propunha, inicialmente em caráter experimental, a fazer algo mais adequado às crianças brasileiras, pois os textos então disponíveis às crianças – basicamente, fábulas –, eram de difícil compreensão. Ele mesmo tomou o enredo de algumas fábulas de La Fontaine e os vestiu “à sua moda”. Percebemos, assim, sua liberdade ao lidar com os textos de outros autores, permitindo-se fazer as adaptações que considerava necessárias para que atendesse aos objetivos que lhes atribuía. 

Recuando ainda mais no tempo, encontramos um Lobato interessado em construir heróis brasileiros seguindo os moldes do romance histórico de Walter Scott – autor de Ivanhoé –, modernizando-o, porém, de acordo com o modelo de Rudyard Kipling – autor de Mogli. Neste sentido, pode-se afirmar que Lobato anseia por criar um passado nobre para o Brasil, apresentando os bandeirantes como heróis, conforme fizeram os românticos com os godos, por exemplo, na Europa ao tentar construir retoricamente uma origem nobre para suas nações. Lobato não queria, porém, incorrer no erro de copiar um modelo que não se encaixava ao contexto nacional, como haviam feito os românticos brasileiros. A saída encontrada seria, pois, imitar um escritor que considerava moderno; daí a importância do estilo de Kipling: “Ando a estudar a história do Brasil. Há nela bons blocos de mármore a serem entalhados. Os bandeirantes, Borba Gato, Fernão Dias – que bandidos soberbos! (...) Um romance histórico feito naturalisticamente! Já notaste que o romance histórico nem sequer ainda balbuciou entre nós? Imagino-o à maneira de Walter Scott, mas com as tintas modernas de Kipling.”. Tivesse Lobato mais tempo ou tivesse o Brasil mais Lobatos, não estaríamos hoje tão carentes de heróis nacionais...

Observação: as informações apresentadas neste texto se encontram na correspondência entre Monteiro Lobato e o tradutor e seu amigo Godofredo Rangel, registrada em LOBATO, Monteiro.  A barca de Gleyre. Vol. I e II. São Paulo: Brasiliense, 1959.

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Vanete Santana-Dezmann

Profissional da área de ensino e pesquisa com 25 anos de experiência. Tem licenciatura e bacharelado em Letras, e mestrado e doutorado em Teorias de Tradução, pela UNICAMP, com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela USP, com estágio de pesquisa no Museu Goethe de Düsseldorf. De seu currículo fazem parte dezenas de artigos científicos, livros e palestras. Atualmente, é professora de Tradução na Universidade Johannes Gutenberg, na Alemanha.