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MARIA d'APPARECIDA NA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA

08/11/2020 Mazé Torquato Chotil Arte e Música

 

Tua voz, d’Apparecida, é aparição

Fulgurante, sensitiva, dramática

e vem do fundo negroluminoso de nossos corações

e vai, e volta e vai - Carlos Drummond de Andrade

 

 

A cantora Maria d’Apparecida (1926-2017) foi, durante a segunda metade do século passado, uma verdadeira embaixadora da música brasileira na França e no resto da Europa. Morta em 2017, em Paris, onde morava, acaba de ter sua biografia em português, Maria d'Apparecida negroluminosa voz, escrita por mim e publicada pela Editora Alameda. No ano passado, saiu a versão francesa, traduzida por Bernard Chotil.

 

Capa do Livro Maria d'Apparecida negroluminosa voz. Imagem: arquivo particular Mazé Chotil.

 

Grande personagem da música brasileira, cantou erudito, mas também MPB e folclore. Raro fazer sucesso em diferentes estilos. Ela o fez. Foi a primeira afrodescendente brasileira a cantar Carmen, na Ópera de Paris. Depois de um acidente, na impossibilidade de cantar uma ópera inteira, passou para a Música Popular Brasileira, onde tinha amigos, registrando um disco com Baden Powel, em 1977. 

Depois de ganhar o diploma de honra e a medalha de prata no Concurso Internacional de Música G.B. Viotti, em Vercelli, Itália, de obter seu diploma no Conservatório do Rio de Janeiro, ao se sentir impedida de fazer carreira no Brasil, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde vivia, por causa da cor da pele – filha de mãe negra empregada doméstica e pai branco de família burguesa de São Paulo – , decidiu tentar carreira no exterior. Chegou à Europa (Portugal, Espanha e França) com o pianista e compositor paraense Waldemar Henrique para um programa de concertos organizado pelo Itamaraty. 

Em Paris, gravou um disco pela Decca, com composições de Waldemar Henrique, o primeiro de mais de vinte, dos quais, quatro premiados, e sempre ao lado de músicos de renome. Entrou, em 1957, para o Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris (CNSMDP) para fazer aperfeiçoamento, quando começou a trabalhar dobrado para realizar o sonho de cantar na Ópera de Paris. O caminho foi longo, mas conseguiu: cantou, pela primeira vez, em 1965, Carmen, de Bizet, naquela importante casa de ópera, depois de a ter interpretado no Grande Teatro de Bordeaux, sudoeste da França, no Brasil. 

A imprensa saudou a voz de mezzosoprano de Maria d’Apparecida que surgia nos palcos franceses: “Possui a voz e a interpretação, um grave de violoncelo e um agudo de metal brilhante” (Le Parisien Libéré); “Carmen é a cigana de Bizet muito bem representada, pela voz ampla, com um grave muito favorecido, um agudo ímpar” (Combat), “Uma Carmen com gestos, voz, olhar, sensualidade, segurança, performance vocal e cénica” (L’Humanité)

Mais tarde, personalidades do mundo artístico se manifestaram sobre seu trabalho: “Voz de inflexões raras e o ritmo harmonioso de seu corpo fazem de Maria d’Apparecida uma das maiores cantoras líricas de hoje”, disse Maurice Escande, ator, administrador-geral da Comédie Française. Enquanto Jorge Amado exclamava “...eis a grande voz do Brasil, profunda e bela”.

 

O acidente

No fim de 1974, na véspera de Natal, Maria d’Apparecida estava num táxi que não parou num farol fechado. Tinha a companhia de um cavalheiro, um aristocrata – seria um membro da família real belga, um antigo namorado, como se especulou à época? Não consegui confirmar. Sua cabeça atravessou o para-brisa, teve cortes no rosto, na testa e cacos de vidro nos olhos. O acidente a deixou por meses no hospital, passando por pelo menos seis cirurgias para reparar o estrago, além do serviço de urgência inicial. Os compromissos foram cancelados, e ela ficou três anos fora dos palcos.

Tempo de pensar na vida, no futuro, na sua negritude e de retomar sua fé católica. Não se sentiu com energia suficiente para o trabalho de todas as manhãs com o professor de música a fim de se aperfeiçoar e preparar novas peças de ópera – o lírico é muito exigente, monacal, demanda uma disciplina rigorosa, como a vida num convento. Ela vivia com medo de frio, de vento, aterrorizada pela possibilidade de ficar doente, explicou uma vez. Além do mais, sua voz ficou abalada com o acidente, não tinha mais condições de cantar uma ópera inteira.

Então, depois de ter cantado oratórios, recitais e óperas, decidiu mudar na continuidade, entrar de cabeça na MPB, onde tinha muita gente amiga. Otimista, era preciso tirar o melhor do pior. Ainda tinha dois braços e os olhos recuperados. Tinha amigos como Chico Buarque, Vinícius de Moraes, que já haviam, no passado, convidado-a para cantar com eles, contou. Na época, não se sentia pronta para disputar com as grandes cantoras populares que o Brasil tinha. Depois, sim. 

A virada foi difícil física e moralmente, mas seguiu adiante. Não deixou de todo o canto lírico nem o folclórico. Foi para a MPB, gravando um disco com Baden Powell, em 1977, com grande sucesso. A imprensa – francesa e brasileira – saudou a passagem de uma cantora lírica para a MPB, e o disco foi reeditado várias vezes. 

A jornalista Katia D. Kaupp (Nouvel Observateur, 25/7/1977), ao ter ido ao seu apartamento, próximo do Arco do Triunfo, comenta que a encontrou “ sob o sol, cercada de discos, livros e seis ou sete imagens do Cristo”, lendo Racine, e que se tratava de uma mulher “grande, simples e atlética, que parece mais uma esportista negra que uma diva”. E, quanto à sua conversão, no texto “Adeus Carmen, viva o Samba”, a jornalista sublinha que a “cantora brasileira (…) obteve tudo que uma carreira triunfante pode dar”, que interpretou Carmen, na Ópera de Paris, e passou a cantar samba, num casamento com a música do deus Baden Powell.

 

O encontro com o pintor Félix Labisse

Depois de gravar o primeiro disco, em 1955, ter se aperfeiçoado no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris, cantado em boates, passado pelo Festival de Cannes e até mesmo ter sido cogitada para realizar o filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, baseado na peça de Vinícius de Moraes, Maria d’Apparecida conheceu o pintor surrealista Félix Labisse e decidiu se instalar definitivamente em Paris, em 1959. Com ele, viveu, durante cerca de 20 anos, uma história surrealista como sua modelo, musa e amante.

Capa do primeiro disco de Maria d'Apparecida registrado com o pianista e compositor Waldemar Henrique. Imagem: arquivo particular Mazé Chotil.

 

Labisse já conhecia o Brasil por ter feito a decoração de várias peças encenadas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro por trupes francesas. Gostava do folclore brasileiro, da beleza de suas mulheres negras, das cerimônias religiosas afro-brasileiras e das figas! Sua casa de Neuilly era decorada com uma quantidade delas, além de outros objetos da nossa cultura. 

O pintor retratou-a em pelo menos quatorze quadros – que se tornaram famosas. Uma delas, talvez a mais conhecida é Maria d’Apparecida, de 1965, que ela utilizava nos folhetos e informações sobre as peças que cantava. Oval, lindo, em cor azul. É, foi queixando-se de que não conseguia dar à tela sua cor de pele, que Maria teria dito ao pintor: “Pinte-me em azul, assim se verá que não sou branca”. 

O quadro foi utilizado também nesta capa da revista belga Journal de l’Amateur d’Art, de 1986, copiada aqui dos arquivos do biógrafo de Félix Labisse, Jean Binder.

 

Capa da revista belga Journal de  l'Amateur de L'ArtImagem: arquivo Jean Binder.

 

Depois de uma bela carreira que findou quando foi obrigada pela idade a abandonar os palcos, no começo deste século, começou a fase do esquecimento. Nunca se casou, não teve filhos e sua morte foi surrealista. Esperou dois meses no instituto médico legal para ser enterrada, correndo o risco de ir para uma vala pública, tal como Mozart. 

História emocionante e triste de uma personagem que participou com maestria da história da música brasileira por meio século e que não me deixou indiferente. Procurei saber mais, depois que as redes sociais procuraram familiares e amigos, no verão de 2017, quando morreu em pleno verão europeu. A biografia lançada agora, em novembro, mês da consciência negra no Brasil, é uma homenagem e uma forma de lhe dar o lugar que merece na história da música brasileira.

Tenha uma boa leitura!  

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.