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LYGIA, NATURALMENTE ESCRITORA E ATIVISTA

08/03/2021 Mazé Torquato Chotil Mulheres Brasileiras

Uma brasileira defensora dos direitos humanos, que instigou a emancipação a feminina e mudanças sociais, para ser sempre lembrada 

Na data que celebra o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, quando mulheres do mundo inteiro reivindicam equidade, isonomia, igualdade e justiça social, escolhemos falar, aqui, de uma das mais importantes brasileiras do século 20, Lygia Fagundes Telles. Escritora, feminista e defensora dos direitos humanos, foi a terceira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1985, precedida apenas por Rachel de Queiroz e Dinah Silveira de Queiroz. 

Dia da posse na ABL, Jorge Amado, Lygia F. Telles e Lêdo Ivo, na primeira fileira da esquerda para direita, secundados por Eduardo Portela e Rachel de Queiroz. Foto: ABL

Ativista de primeira hora, a autora integrou, ao lado de Antonio Candido, Rubem Fonseca e Sérgio Buarque de Hollanda, o Manifesto dos Mil, contendo a assinatura de mil intelectuais e de gente ligada à cultura contra a censura a mais de 400 obras de autores brasileiros e estrangeiros, entregue ao então ministro da Justiça Armando Falcão. 

 

AS MENINAS DE LYGIA, UM CASO À PARTE

O escritor mineiro Luiz Ruffato diz que “Lygia ocupa um papel importantíssimo na discussão do lugar da mulher na sociedade brasileira. Sem alarde, certamente seus livros contribuíram sobremaneira para a tomada de consciência de seus milhares de leitores. As mulheres de seus livros são fortes, decididas, impetuosas, ainda quando aparentemente submissas e conformadas. Um exemplo – um entre inúmeros outros que se alastram por toda a sua vasta obra – é o romance As Meninas, corajosamente lançado em plena ditadura militar.”

Realmente, um caso à parte. Editado nos anos mais duros da ditadura militar e citado como dos mais importantes da autora, o livro conta a história de Lia, Lorena e Ana Clara, três amigas e estudantes que moravam num pensionato católico durante a ditadura militar e, nele, transcreve um bilhete que recebeu de um torturado. Nesta obra, Lygia também narra as mudanças pelas quais passava a sociedade brasileira, desde a Segunda Guerra Mundial, quando mulheres – ainda que poucas – puseram os pés nas fábricas, nos escritórios, nas escolas e universidades, a entrar no mundo do trabalho, o que acabaria por emancipá-las economicamente. 

 

“L” DE LYGIA E DE LITERATURA

Escritora desde quando começou a ler e a escrever, com 15 anos, em 1938, ela publicou Porão e Sobrado, coletânea de 12 contos, depois considerados “ginasianos” por ela própria, preferindo ter em Ciranda de Pedra, romance de 1954, o marco de sua maturidade literária, segundo o professor Antonio Candido, escritor e também crítico literário. Este seu primeiro romance guarda a peculiaridade de narrar o drama de uma família desestruturada a partir da visão de Virgínia, uma criança. O livro foi imediatamente aclamado pela crítica.

Capa da última edição de Ciranda de Pedra. Fonte: Reprodução/Divulgação.

“escrever é lutar

contra o medo”

                          – Lygia Fagundes Telles

 

Quando lançou Porão e Sobrado, enviou-o a Érico Veríssimo, autor de Olhai os Lírios do Campo, e teve a ousadia de fazer crítica a uma obra do escritor, já consagrado à época. Ganhou um amigo. Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade sempre a incentivaram e foram seus grandes amigos, como atestam cartas trocadas entre eles, além de outros documentos dos arquivos da escritora, cedidos ao Instituto Moreira Salles (IMS).

Em seguida, vieram, entre contos e romances, Histórias do Desencontro (1958) e Verão no Aquário (1963), mas foi na pródiga década de 1970, que veio a consagração com Antes do Baile Verde (1970), As Meninas (1973), Seminário dos Ratos (1977), Filhos Pródigos (1978), republicado com o título A Estrutura da Bolha de Sabão (1991).

Depois, surgiram A Disciplina do Amor (1980), As Horas Nuas (1989), A Noite Escura e Mais Eu (1995), Invenção e Memória (2000), Durante Aquele Estranho Chá (2002) e Conspiração de Nuvens (2007). 

Lygia Fagundes Telles sempre enxergou o mundo e sua vastíssima humanidade. Não à toa, tratou, em sua obra, de homossexualidade, adultério, corrupção, enfim, da vida, ela mesma, em toda a sua complexidade. 

A escritora é responsável por um belo patrimônio literário. Mais de 17 livros, dos quais considera A Disciplina do Amor sua melhor obra. Nestes últimos anos, foram todos reeditados pela Companhia das Letras, não antes de sua releitura, quando aproveitou para fazer alguns  acréscimos, como o de dar nome completo a personagens, até então chamadas pelas iniciais.

 

TRADUÇÕES E PREMIAÇÕES 

Teve livros traduzidos e publicados na Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Portugal, República Tcheca e Suécia. E suas obras foram adaptadas para o cinema, teatro e televisão. 

Recebeu os mais importantes prêmios: Jabuti, Arthur Azevedo da Biblioteca Nacional, APLUB de Literatura, Golfinho de Ouro, Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, da Associação Paulista de Críticos de Arte, PEN Clube do Brasil, Prêmio no Concurso Internacional de Escritoras, na França, até o mais importante prêmio da língua portuguesa, o Camões (2005), pelo conjunto da obra.

“Lygia Fagundes Telles

sempre teve o alto mérito de obter

no romance e no conto, a limpidez

adequada á uma visão que penetra

e revela, sem recurso a qualquer

truque ou traço carregado,

na linguagem ou na caracterização”

                          – Antonio Candido

 

A imprensa, por seu turno, deu-lhe o espaço merecido em artigos e entrevistas na mídia impressa e televisada. Lygia foi agraciada com o reconhecimento do público, a quem sempre considerou, mais que um parceiro, um cúmplice. 

 

O OUTRO LADO DA ESCRITORA

No próximo 19 de abril, Lygia completará 98 anos de vida. Nascida na capital de São Paulo, numa época em que mulher tinha poucos direitos reconhecidos na sociedade, de pai promotor público e mãe pianista e dona de casa, Lygia viveu no interior do estado antes de voltar para a capital, para cursar direito na renomada Faculdade do Largo São Francisco, da USP, concluído em 1946, apenas seis anos depois de permitido o ingresso de mulheres. À época, eram seis ou sete entre 400 rapazes. 

Encontrou-se com Simone de Beauvoir e suas ideias somente nos anos 1960. Naturalmente feminista, sempre acreditou que a mulher deveria ser independente financeiramente. Numa época em que grande parte da população brasileira era analfabeta – e as mulheres, muito mais! – formou-se em educação física, além do direito, para, aumentando suas possibilidades, garantir um lugar no mundo profissional. Formada, foi trabalhar como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, até se aposentar. 

O filho de seu primeiro casamento deu-lhe duas netas e uma bisneta. Depois de divorciada, casou-se com o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes. 

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“Pela sua militância, por sua influência sobre gerações de ficcionistas, por sua postura política, tanto na ficção e fora dela, e pelo texto fluido e inteligível de fácil apreensão pelo leitor de língua portuguesa”, afirma Eliana Bueno Ribeiro, coautora de Pelo Sonho é que Vamos: Dossiê Lygia Fagundes Telles. 

Pois foi com esta mulher bonita, elegante e inteligente, que cruzei, nos anos 2000, no espaço dedicado às editoras brasileiras na Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha. Eu tinha lido e me emocionado com Ciranda de Pedra. E encontrá-la em carne e osso, estar face a face com uma escritora de tamanha envergadura foi uma honra, um privilégio, num evento dos mais relevantes do campo literário.

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.