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DE REPENTE UM POETA, DE REPENTE UM REINADO

12/05/2020 João Araújo Arte e Música

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Violeiro repentista, João Araújo. (Foto e arte: Carolina Araújo).

 

No império encantado da poesia, há reis raros e destemidos que construíram seu reinado enfrentando batalhas acirradas contra adversários ilustres e sob a presença inexorável das correntezas do juízo do tempo. Sim: o tempo. Pois que tais reis se honraram ao tocar o trigo da poesia e elaborar o seu pão quase que de forma instantânea. O desafio é perigoso. Não há muito tempo para pensar. Tem-se menos de um segundo para improvisar. A qualquer descuido, o adversário pode desferir um golpe derradeiro. O arrebatamento pelas lutas vencidas por tais reis está justamente aí: na forma repentina como eles acedem o Belo, sob a pressão do momento que flui.

Alguns desses reis carregam um cetro encordoado, a viola, como apoio a suas pelejas. Outros empunham, atipicamente, uma rabeca ou um pandeiro. Mas a sua arma mais eficaz é a lâmina afiada do seu pensamento ligeiro e certeiro. E quando o golpe é bem desferido, paralisa o oponente de forma precisa. Tais reis guerreiros são os repentistas nordestinos, cujos castelos imponentes foram construídos, tijolo a tijolo, no palmilhar das estradas, brenhas e desafios organizados pelos interiores brasileiros.

As regras e campos de batalha variam e são acordados previamente, num pacto de cavaleiros que decidem como irão duelar. Uma das minutas mais comuns adotadas é a sextilha, que é uma estrofe constituída por seis versos e, normalmente, cada um tendo sete sílabas poéticas (versos heptassílabos, também conhecidos como redondilhas maiores). O esquema das rimas é constituído normalmente por versos pares. Vale trazer aqui uma ilustração desta forma dos versos, numa peleja entre Lourival Batista Patriota (o Louro do Pajeú) e Severino Lourenço da Silva Pinto (o Pinto do Monteiro). As sextilhas haviam sido acordadas preliminarmente. Em determinado momento do embate, Louro concluiu:

Louro do Pajeú:

É isso que me distrai

Vou terminar com mais fé

Que ali já deram um sinal

Pra o filho de São José

Vou tomar outra bicada

E Pinto tomar o café

 

(conheça mais sobre Louro do Pajeú aqui

 

Vale lembrar aqui que os versos acima foram criados na hora da cantoria, como rege a arte do repente. Quase não houve tempo para pensar e elaborar a estrofe conforme as regras pré-estabelecidas. No quarto verso acima, Louro referiu-se a São José do Egito, cidade onde nasceu a 6 de janeiro de 1915. Destaque, ainda na sextilha com este exemplo, para as rimas nos versos pares: fé, José e café. 

Mas tais combates podem ser ainda mais duros e complexos. Na forma dez pés a quadrão, os guerreiros arremetem golpes de forma alternada, verso a verso. A estrofe completa é construída a duas mãos até perfazerem-se dez versos, cumprindo um esquema de rimas ABBAACCDDC. Quando um pelejador inicia e solta o primeiro verso com a sua voz, o adversário responde na hora com o verso seguinte e ambos assim prosseguem, construindo sucessivamente a estrofe completa com sentido e coerência temática. É uma corrida contra o relógio. Ao fim, ambos finalizam em coro com um verso fixo, como, por exemplo: “E lá vão dez pés a quadrão”. A seguir, numa contenda ainda entre Louro do Pajeú e Pinto do Monteiro, vê-se um registro de um desses embates, que, no caso, foi iniciado por Pinto: 

Pinto: O vexame é contra a calma

Louro: E a calma é contra o vexame

Pinto: Ignorância é o exame

Louro: Matéria foi contra a alma

Pinto: Esse não merece palma

Louro: Mas Deus lhe dá o perdão

Pinto: Chegando a ocasião

Louro: Nos salva em qualquer hora

Pinto: Bota longe da caipora

Pinto e Louro: E lá vão dez pés a quadrão

 

(conheça mais sobre Pinto do Monteiro aqui)

 

A complexidade e variedade das formas da cantoria ou repente são bastante amplas. Outros exemplos de estruturas no versejar são as décimas, o mourão, os galopes, os martelos etc. É espantoso perceber que os cantadores criam os seus versos instantaneamente, dentro da temática e contexto exigidos e ainda respeitando as leis silábicas e de rimas que lhe foram impostas. E, assim, os guerreiros atravessam as veredas do Império da Poesia. Assim, muitos desses cavaleiros repentistas viraram reis, lutando contra o tempo e forjando na sua correnteza imparável centenas de versos de improviso. Muitos mereceram reconhecimento das paragens e das povoações por onde passaram e fizeram brilhar as suas lâminas afiadas. Muitos deles foram homenageados e louvados por autoridades e colegas de batalha. Para finalizar, lembra-se o registro feito pelos repentistas João Paraibano e Sebastião Dias ao homenagearem, por exemplo, a saga poética e destreza de Pinto do Monteiro aquando de sua morte. Dias e Paraibano utilizaram versos decassílabos e o seguinte mote para a cantoria (Nota: aqui o mote é constituído por dois versos que influenciam a feitura de todo o repente): “O Nordeste chorou porque perdeu / Seu maior patrimônio de poesia”. Uma das estrofes do repente foi dita assim:   

João Paraibano e Sebastião Dias:

Calem todas as musas do Parnaso,

Chorem todos poetas, ouçam gênios

A leitura da ata dos milênios

Que em pauta registra um triste caso:

É que o tempo pediu o fim do prazo

Do oráculo do reino da magia

Cuja sua imortal sabedoria

Teve em nosso planeta o apogeu,

O Nordeste chorou porque perdeu

Seu maior patrimônio de poesia. 

 

(conheça mais sobre João Paraibano aqui)

 

Para conhecer mais sobre o universo dos maiores repentistas violeiros do Brasil, inscreva-se gratuitamente no Canal YouTube e acompanhe a Série "Mestres da Poesia", que publica regularmente episódios sobre os poetas brasileiros.

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João Araújo

Compositor, escritor, produtor artístico e músico. Formou-se bacharel e mestre em Física Teórica pela UFPE e especializou-se em Literatura Brasileira pela mesma Universidade. Em Portugal, concluiu o Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas na Universidade de Évora. Alguns dos seus trabalhos foram premiados, a exemplo do Prêmio Jabuti 2011 como coautor na Categoria Ciências Exatas, e do 1° Lugar do concurso nacional de contos “Agostinho de Cultura – 2012”.