16/11/2020 Paula Botelho Raízes Culturais
Queijos mineiros. Imagem: reprodução / Portal do Queijo. (Foto: Ignácio Costa).
Reza a lenda, ou diz um “causo”, que um mineiro certa vez encontrou uma lâmpada. Esfregou-a com força, pensando, é claro, na possibilidade de dar de cara com um gênio. E deu. Ainda meio assustado, mas muito contente, ouviu do gênio a clássica explicação de que poderia fazer três pedidos e o alerta para que fosse cuidadoso nas escolhas, porque eram mesmo só três.
O mineiro, então, pediu uma montanha colossal de queijo. O gênio achou estranho, mas gênio não discute a natureza do pedido com quem pede. E, assim, concedeu ao mineiro uma quantidade imensa de queijo. Com alegria pueril, o mineiro ia beliscando todos os cantos da montanha de queijo, alucinado com os sabores e texturas, quando o gênio, meio irritado, talvez por achar que ia demorar e porque estava com pressa – tem gênio sem paciência também –, lhe disse para proceder ao segundo pedido, pois ainda havia outros trabalhos lhe aguardando. O mineiro, sem hesitação, pediu uma segunda montanha de queijo, desta vez dez vezes maior do que a primeira. O gênio achou uma loucura, mas fez sua vontade.
Ensandecido, o mineiro rodava em volta dos queijos e comia tudo o que podia, sem saber ainda como iria levar e guardar tanto queijo, quando ouviu do gênio que pensasse bem no seu terceiro desejo, porque era de fato o último. E o mineiro lhe disse que queria... queria uma mulher. O gênio achou esquisito o pedido, pois jurava que seria diferente. Pediu desculpas ao mineiro e lhe disse que não era da conta dele perguntar o motivo da escolha, afinal, gênio concede o desejo, e pronto. Não tem essa de ficar argumentando sobre a natureza do pedido. Mas não resistiu e lhe disse que jurava que ele pediria uma terceira e monumental pilha de queijos, maior do que todas as anteriores. E qual não foi a surpresa ao ouvir o mineiro dizer que queria ter pedido mais queijo, mas que recuou porque tinha ficado com vergonha.
De fato, mineiro gosta muito, muitíssimo, de queijo. “Mineiro é assim, corre queijo na veia”, diz Concessa, no seu canal Tecendo Prosa .
Queijo, queijos. Palavras quase sublimes para o mineiro. Também substantivo plural, pois há muitos. Mineiro, adjetivo, pois atributo que qualifica. Mineiridade, marca cultural de um estado e de um povo (sou mineira, e põe orgulho nisto!).
Curado, meia cura, frescal, coalho, requeijão, a variedade é grande e os sabores incríveis. Muitos queijos se tornaram opções de sofisticados repertórios gastronômicos, e são sugeridos com a degustação de vinhos e cervejas artesanais. Os queijos mineiros também concorrem internacionalmente com outras produções famosas.
Oriundo de várias cidades, o queijo canastra é talvez o representante de maior peso entre os queijos mineiros. A denominação se relaciona com sua origem, a Serra da Canastra, belíssima região mineira de cachoeiras e paisagens bucólicas, que inclui municípios como São Roque de Minas e Araxá.
Os queijos carregam não só narrativas inscritas nas tradições populares, como dão precioso testemunho da própria história dos costumes. Quem produz aprendeu, na grande maioria das vezes, com os pais ou os avós. A manutenção das práticas de fazer o queijo ao longo dos tempos e a convivência com os vestígios do passado geram conforto identitário – como bem diz José Newton Coelho Menezes, doutor em História, no dossiê Queijo Artesanal do Brasil: Patrimônio Histórico –, reconhecimento e aprendizado.
Ao longo dos anos, os queijos mineiros têm recebido consideráveis distinções em competições. Em 2019, foram premiados em um dos mais importantes concursos de queijos do mundo, o Mondial du Fromage. Realizado a cada dois anos, neste último concurso, em Tours, na França, receberam 4 medalhas na classificação superouro, categoria máxima de premiação; na categoria ouro, 6; prata, 23; e bronze, 22. Entre as regiões produtoras laureadas em Minas Gerais, o destaque foi para a Serra da Canastra. A cidade do Serro, também em Minas Gerais, concorre com a boa reputação de famosa produtora de queijos.
Queijo mineiro premiado. Foto: reprodução / Greenco.
Com a expansão da produção ao longo do tempo, São Paulo, Rio Grande do Sul e outros estados também vieram a compor o circuito da produção de queijos, porém Minas Gerais sedia tradição e história.
O queijo artesanal mineiro chegou ao Brasil no início do século 18, trazido pelos portugueses. Era produzido na Serra da Estrela, que tem muitas semelhanças com as de Minas Gerais, conta Ângela Gutierrez, então conselheira do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ela diz que o queijo mineiro “atravessou os séculos sendo feito da mesma forma, com os mesmos detalhes com que era feito no início do século 18”. Este modo de fazer não poderia jamais ser perdido, e, assim, o queijo da Serra da Canastra foi tombado como Patrimônio Cultural e Imaterial Brasileiro.
Em seu sentido mais amplo, o patrimônio cultural é, ao mesmo tempo, um produto e um processo que inclui recursos herdados do passado, criados no presente e transmitidos às gerações futuras para seu benefício. São considerados “riqueza frágil” e, por isto, demandam políticas e modelos de desenvolvimento que preservem e respeitem sua diversidade e peculiaridade, já que, se perdidos, são irrecuperáveis. A noção de patrimônio equivale à de “capital cultural” das sociedades contemporâneas. O reconhecimento como patrimônio contribui para a revalorização contínua das culturas e do que representam como transmissão de experiências e conhecimentos entre gerações, de acordo com os Indicadores de Cultura da UNESCO para o Desenvolvimento (IUCD).
No Brasil, o patrimônio histórico é responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), vinculado ao Ministério da Cultura. No ano de 2008, a fabricação artesanal do queijo em Minas Gerais foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial brasileiro, imenso orgulho para Minas Gerais e para o Brasil.
A qualidade dos pastos, das águas, a altitude e o clima são determinantes para o sabor do queijo canastra, em acréscimo aos modos da tradição artesanal: feito com leite cru, ele não recebe qualquer tratamento térmico, corantes ou conservantes. Como ingredientes, são utilizadas culturas lácticas naturais como o pingo (espécie de fermento líquido, extraído da produção do dia anterior), soro fermentado, coalho e sal grosso.
Sentar e tomar um café coado na hora e partilhar um queijo e muita, muita prosa tem um significado particular na cultura mineira. Há uma sociabilidade em torno do queijo que começa na escolha do queijo de melhor qualidade para a visita que vai em casa, ao ritual de café e quitandas (Coelho Menezes), como se denomina, em Minas Gerais, o conjunto de bolos, broas, biscoitos caseiros e outros quitutes saborosos no lanche servido aos amigos e às visitas. Degustar o queijo e as outras delícias em grupo apresenta as pessoas umas às outras, dando-lhes a boa ocasião de se conhecerem.
Mas, no encontro com o gênio, o mineiro se depara, no terceiro desejo, com a obrigação de afirmar um outro pedido.
Dilemas do desejo e do que ele representa, nas lutas com o que pensamos que deve ser desejado, já que desejar um queijo em detrimento de uma mulher pode colocar em xeque atributos e papéis masculinos associados aos homens, no imaginário de muitos. Mas desejar comer queijo vai muito além de degustar sabores primorosos: é um encontro com a história, a tradição, a amorosidade, a convivência e o aprendizado. É abrir as portas de casa para o outro e para o que conviver representa, enquanto comemos queijo e tomamos café passado na hora; ou quando o queijo é parte da sobremesa que oferece goiabada, doce de mamão e de laranja da terra e outras delícias para quem chega. É a repartição de experiências, e de práticas de alimentação e de vida.
E, por isto, termino aqui com um convite múltiplo. Nunca se acanhe de desejar o que tanto gosta. E saboreie, se ainda não conhece, os queijos canastra, serro e outras iguarias mineiras. Se possível, em Minas Gerais. No interior, na capital, em qualquer cidade. No Brasil, mas também fora dele. Escute a história contada pela mineiridade e se aproxime dos fazeres ligados ao queijo e a outras quitandas. Ao redor de uma boa prosa, café coado na hora, um fogão de lenha, quando der, muitos “causos” e boa convivência. Porque não há gênio que dê tudo isso, mesmo que ele te dê o queijo.
Doutora em Language, Literacy and Culture (Universidade de Maryland), mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), tradutora certificada (Centro de Ensino Brasillis), reside nos Estados Unidos há quase 15 anos. Seus livros e textos discutem o bilinguismo, migração, português como língua de herança e a visão da imprensa americana sobre a cultura brasileira. Atualmente, trabalha com escrita e tradução, ensino de português para estrangeiros, como em oficinas de cultura brasileira e literatura para crianças brasileiro-americanas.