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A SEMANA DE 22 FAZ CEM ANOS

18/02/2022 Eveline de Abreu Raízes Culturais

O Brasil celebra o centenário da agitada Semana de Arte Moderna de 1922, inaugurando o Modernismo que veio para ficar

O Theatro Municipal de São Paulo, no ano do centenário da Independência do Brasil, abrigou a Semana de Arte Moderna de 1922, com exposições de artes visuais e apresentações de poemas e peças musicais. O evento foi recebido com espanto, vaias e o repúdio de um público bastante frustrado. A respeito de tais reações, Di Cavalcanti havia vaticinado que "... seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista". E foi.

Mário e Oswald de Andrade foram os ideólogos da Semana de 22. Mas coube a Paulo Prado a sua realização. Figura reconhecida na sociedade paulistana, Prado aliou-se ao conceituado romancista Graça Aranha e aos barões do café para dar lugar – o Theatro Municipal de São Paulo – aos interesses dos interessantes artistas vanguardistas.

 

IDEÓLOGOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 

 

  

No foyer do teatro, uma exposição de cerca de uma centena de obras dos pintores Anita Malfatti, Antônio Paim Vieira, Di Cavalcanti, Ferrignac (Inácio da Costa Ferreira), John Graz, Vicente do Rego Monteiro, Yan de Almeida Prado e Zina Aita, além das esculturas de Hildegardo Velloso, Victor Brecheret e Wilhelm Haarberg. Na arquitetura, compareceram Antônio Garcia Moya e Georg Przyrembel.

À noite, havia apresentações literárias e musicais; entre poetas e escritores, estavam Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira (que recitou o poema “Os Sapos”), Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Renato de Almeida, Ronald de Carvalho e Tácito de Almeida. Além de três sessões musicais diárias, com as composições de Villa-Lobos e Debussy, executadas pelos pianistas Guiomar Novaes e Ernani Braga. 
 
 
Villa-Lobos, por volta de 1922 (Commons Wikimedia).  
 
No entanto, não havia um projeto estético definido. A Semana de 22 foi tão somente a rejeição ao que era antiquado, ultrapassado na literatura, na música e nas artes plásticas. O clamor era pela livre expressão artística com a derrubada de seus cânones. O que une seus integrantes é a rejeição a todo e qualquer "passadismo", em favor do corte com o tradicionalismo, que já não fazia sentido na era da eletricidade, da máquina a vapor e dos automóveis. Não se pode afirmar que a Semana de 22 tenha estabelecido uma intensa cisão com a arte tradicional: no evento, não houve unidade estética nas obras, a que se possa nomear de a estética do modernismo.
 
 
O MODERNISMO NO BRASIL É MESMO BRASILEIRO? 
 
Não, se considerarmos, tão somente, o tópico acima. E sim, se levarmos em conta a ânsia dos artistas e intelectuais brasileiros de se desembaraçar da reprodução ipsis litteris dos cânones europeus, conferindo destaque às características da nossa cultura e enaltecendo o que é nacional. Em linhas gerais, foi a era do experimentalismo estético, da criatividade, do comprometimento social, do cotidiano como objeto da arte e da liberdade dos grilhões academicistas. Em desobediência à tradição do Velho Mundo, o Modernismo brasileiro afastou-se dos modelos artísticos europeus, para dar lugar a um conceito próprio, ainda que elitista.
 
O acontecimento foi, inegavelmente, o eixo para o entendimento do avanço da arte moderna nacional, sobretudo pelas discussões públicas negativas ou de apoio e pelos desdobramentos na obra de seus criadores. Enfim, a Semana de Arte Moderna inaugurou, formalmente, a manifestação coletiva e pública na cultura brasileira a favor de um espírito novo, em oposição à cultura e à arte conservadora, predominantes no país desde o século 19.  
 
 
ANTES DA ECLOSÃO DA SEMANA DE 22
 
O Modernismo brasileiro não nasceu de um dia para o outro, num piscar de olhos. Já cinco anos antes, numa exposição em 1917, as telas de Anita Malfatti foram alvo de desconcertantes opiniões do público, dada a inspiração na ‘estranheza’ estética do vanguardismo europeu, onde estavam em voga o cubismo, futurismo, impressionismo, ferrenhamente combatidos por Monteiro Lobato.
 
Os debates que cercavam a renovação das artes já estavam presentes no meado de 1910, em revistas e exposições, como a de Anita Malfatti, em 1917. Quatro anos depois, a disposição de aproveitar o Centenário da Independência em oportunidade de autonomia das artes já ocupava a cabeça de Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia.
 
A Estudante (1915-1916), de Anita Mafalti. Acervo do Museu de Arte de São Paulo. (Commons Wikimedia).  
 
Se o Modernismo desembarcou no Pós-Modernismo, é de se supor um pré-modernismo a germinar a Arte Moderna. Mas ele não alcançou o estatuto de movimento organizado. Grosso modo, predominava a reprodução do naturalismo, do parnasianismo, do realismo e do simbolismo europeus. Muito embora, no campo das Letras, encontremos autores de peso estilístico e ideias originais sobre o país – Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto e Monteiro Lobato –, com livros regionalistas progressistas e alguns outros dedicados à literatura política. 
 
 
SÃO PAULO, OS BARÕES DO CAFÉ E OS MODERNISTAS
 
O café veio da África e, no Brasil, entrou pelo Pará. No entanto, graças à boa adaptação ao solo e ao clima do Vale do Paraíba, no Sudeste, abrangendo parte do território paulista e fluminense. São Paulo, seguido do Rio de Janeiro, torna-se, então, líder da lavoura cafeeira, espalhada em imensas propriedades rurais privadas – os ditos latifúndios dos ditos barões do café, que cresceram em importância política e social. Não à toa, São Paulo tornou-se um estado poderoso e o mais rico do país.
 
Inevitável a acelerada urbanização da capital paulista, e as classes trabalhadoras se organizavam, faziam greves, reivindicando melhores salários e condições de trabalho mais dignas. Esses embates sinalizam uma crise na República, que toma forma, corpo e voz nos anos 1920, servindo de inspiração para os questionamentos levantados na Semana de Arte Moderna. Ora, e quem são os agitadores do Movimento Modernista, senão os filhos das oligarquias cafeeiras!
 
A fortuna levou os barões a investirem na educação de seus herdeiros, enviando-os para frequentar faculdades na Europa. No entanto, muito mais do que a formação intelectual, a intenção desses fazendeiros era a manutenção do status social. O resultado é que muitos retornavam pouco interessados em ter uma profissão. Mas tiveram a oportunidade de ver, in loco, o que acontecia nos loucos anos 1920, em Paris, que, à época, concentrava jovens artistas da vanguarda iconoclasta da arte tradicional do Ocidente. Assim foi que os latifundiários do café terminaram – sem querer ou pretender! – por patrocinar o Movimento Modernista brasileiro.
 
 
AS ETAPAS DO MODERNISMO
 
Se a Semana de 22 foi um evento localizado, o Modernismo brasileiro foi um fenômeno de caráter e abrangência nacional. A partir dele, nada, na arte, continuou a ser como antes. O que melhor ilustra a brasilidade e a valorização do nacional do Modernismo na América portuguesa reside nas suas gerações ou fases, como nomeiam alguns.
 
A Fase Heroica – de 1922 a 1930 – tinha o propósito de revolucionar a estética, exaltava a nossa identidade, o nosso cotidiano, a brasilidade da nossa cultura, utilizando uma linguagem irreverente, ufanista e sarcástica, em contraposição ao parnasianismo, apesar de balizada nas obras renovadoras da Europa, à época.
 
Aboporu, de Tarsila do Amaral, obra ícone do Modernismo brasileiro. Óleo sobre tela, 1928.  
Fonte: Folha Ilustrada (Commons Wikimedia).  
 
Os artistas que nela se destacaram compunham o Grupo dos Cinco: Anita Malfatti (desenhista, gravadora, ilustradora, pintora e professora); Mário de Andrade (crítico, fotógrafo, historiador da arte, musicólogo, poeta e romancista); Menotti Del Picchia (cronista, ensaísta, jornalista, pintor, poeta e romancista); Oswald de Andrade (dramaturgo, ensaísta, escritor e poeta); e Tarsila do Amaral (desenhista, pintora e tradutora). 
 
A Geração de 1930 – de 1930 a 1945 – foi abundante na poesia, e a prosa tanto urbana como regionalista (dedicada bastante ao Nordeste), cujo eixo era o Homem e o seu destino no mundo, demostrando clara inspiração na psicanálise freudiana. Da fase anterior, carregou a predileção por tópicos sociais e a aversão ao academicismo.
 
Na prosa, os principais escritores foram Érico Veríssimo, autor de Olhai os Lírios do Campo e O Tempo e o Vento; Clarice Lispector, com Perto do Coração Selvagem e A Paixão Segundo G. H.; Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, em que descreve a fome e a miséria dos retirantes nordestinos; Jorge Amado, autor de livros tanto regionalistas como urbanos, destaca-se com os romances O País do Carnaval, Cacau e Capitães de Areia; José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira, retratou a seca e a vida dos retirantes; José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho, obra que aborda o ciclo de açúcar nos engenhos nordestinos; e Rachel de Queiroz, autora de O Quinze, um comovente “tratado” sobre a implacável seca nordestina de 1915.
 
Clarice Lispector, por Maureen Bisilliat em agosto de 1969. Acervo IMS. (Commons Wikimedia).  
 
Já na poesia, os autores e obras de maior relevância foram Augusto Frederico Schmidt, com os livros O Galo Branco e Estrela Solitária; Carlos Drummond de Andrade, com destaque para Alguma Poesia, volume publicado em 1930; Cecília Meireles, tida como poetisa grandiosa, compareceu com os livros A Festa das Letras, Batuque, Samba e Macumba e Viagem; o artista plástico escritor Jorge de Lima – o “príncipe dos poetas” – apresentou-se com o poema O Acendedor de Lampiões e os livros Poemas e Novos Poemas; Mario Quintana, o “poeta das coisas simples”, e é, dessa fase, o seu livro de sonetos A Rua dos Cataventos; Murilo Mendes, de cuja obra poética destacam-se Poemas, Bumba-meu-Poeta, Poesia em Pânico e O Visionário; e Vinícius de Moraes – apelidado por Tom Jobim de "Poetinha", dado o seu estilo lírico – que publica o seu primeiro livro de poemas Caminho para a Distância, seguido do extenso poema Ariana, a mulher.
 
Nas belas-artes, ou artes plásticas, os expoentes foram Cícero Dias, um dos precursores do abstracionismo e próximo do surrealismo, harmonizando os costumes pernambucanos com o espírito vanguardista; Ismael Nery, pintor cuja criatividade suscita o inconsciente característico do surrealismo; e Oswaldo Goeldi, que descortina a injustiça social, a morte, a pobreza, a solidão e o subúrbio em técnicas variadas como a aquarela, o desenho, a litografia e a xilogravura.
 
Autoretrato (1930), de Ismael Nery. Coleção MAM do Rio de Janeiro. (Commons Wikimedia).  
 
No Rio de Janeiro, formou-se o Núcleo Bernardelli, frequentado por jovens artistas plásticos que, apesar de inovadores, eram os menos extremistas do Modernismo. Entre eles, Ado Malagoli, cuja pintura figurativa de cenas urbanas, naturezas-mortas, paisagens e retratos denuncia a adversidade social; Bustamante Sá, conhecido pelo uso de tons suaves de seus quadros foi um antiacademicismo avesso à pintura de ateliê e crítico da hierarquia dos gêneros; Joaquim Albuquerque Tenreiro dedicou-se à pintura de paisagens, naturezas-mortas e retratos; José Pancetti, afeiçoado aos cenários urbanos, às paisagens marinhas e aos retratos; Milton Dacosta, dos mais radicais do grupo, com telas de forte influência do construtivismo e do cubismo; Quirino Campofiorito, adepto da arte figurativa, dedicou a sua pintura à gente simples e ao trabalho: na tela O Operário, põe em relevo a fisionomia e as mãos calejadas dos trabalhadores.
 
Enquanto em São Paulo, criou-se o Grupo Santa Helena (núcleo da futura Família Artística Paulista), cujo maior mérito foi congregar alguns dos mais fecundos artistas plásticos do século 20, entre escultores e pintores autodidatas, oriundos de famílias proletárias. A estética era intermediária do Academismo e do Modernismo dos anos 1920. Aldo Bonadei é tido como um dos precursores da arte abstrata no país; Alfredo Rizzotti dedicou-se à pintura de paisagens e de naturezas-mortas e revelou maestria em seus autorretratos; a pintura de Alfredo Volpi proliferou no domínio da cor, a exemplo de suas conhecidíssimas telas repletas de bandeirinhas; Clóvis Graciano, sempre leal ao figurativismo, nunca aderiu ao abstracionismo na representação dos retirantes e outros temas sociais; Francisco Rebolo – o "mestre do meio-tom" – pintou cenas urbanas e suburbanas, naturezas-mortas, paisagens, retratos e autorretratos; Fulvio Penacchi, com a sua paleta em tons terrosos, como vista em Crucificação expõe toda a dramaticidade pela composição verticalizada; Manuel Martins, artista capaz de manter a visão primitivista, da qual resulta o grande encanto de suas telas e gravuras, mostrando o homem anônimo; e Mario Zanini se distingue dos demais por seu profundo e intenso colorido, quase ingênuo, e, tanto quanto Volpi, foi um dos maiores coloristas da pintura modernista.
  
Houve uma Terceira Geração, a Geração de 1945 ou Pós-Modernista, como descrevem Tristão de Athayde e Ivan Junqueira. Trata-se da última etapa do movimento. Em vista da discordância entre críticos, teóricos e estudiosos quanto ao período – se até 1960 ou a até 1980 – não será exposta neste texto. De toda sorte, o que dela se diz é ter se caraterizado pelo abrandamento dos ímpetos inovadores e revolucionários de 1922. É quando a radicalidade cede lugar a expressões artísticas menos contestadoras e mais convencionais. De certo é que, ao menos sob a minha análise, o que a Semana de Arte Moderna inaugurou está longe de se encerrar, haja vista a arquitetura, o cinema e o teatro.
 
 
REFERÊNCIAS
 
 
. A Semana de Arte Moderna de 1922 (https://www.terra.com.br/noticias/educacao/historia/a-semana-de-arte-moderna-de-1922,200823d6c76da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html)
 
. Características do Modernismo (https://conhecimentocientifico.com/caracteristicas-do-modernismo/)
 
. Legado da Semana de Arte Moderna de 22 (https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2022/02/07/interna_cultura,1342979/legado-da-semana-de-arte-moderna-de-22-e-rediscutido-em-seu-centenario.shtml)
 
. Modernismo Brasileiro (https://www.portugues.com.br/literatura/modernismo-brasileiro.htmlModernismo (https://www.preparaenem.com/portugues/modernismo.htm)
 
. Modernismo no Brasil (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo359/modernismo-no-brasil; https://pt.wikipedia.org/wiki/Modernismo_no_Brasil; https://brasilescola.uol.com.br/literatura/o-modernismo-no-brasil.htm; https://www.todamateria.com.br/modernismo-no-brasil/)
 
. O que foi o Modernismo? (https://www.culturagenial.com/modernismo/)
 
. Pré-Modernismo (https://sites.google.com/site/donadionara/z)
 
. Quatro curiosidades sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 (https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/veja-4-curiosidades-sobre-a-semana-de-arte-moderna-de-1922/)
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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.