No entanto, não havia um projeto estético definido. A Semana de 22 foi tão somente a rejeição ao que era antiquado, ultrapassado na literatura, na música e nas artes plásticas. O clamor era pela livre expressão artística com a derrubada de seus cânones. O que une seus integrantes é a rejeição a todo e qualquer "passadismo", em favor do corte com o tradicionalismo, que já não fazia sentido na era da eletricidade, da máquina a vapor e dos automóveis. Não se pode afirmar que a Semana de 22 tenha estabelecido uma intensa cisão com a arte tradicional: no evento, não houve unidade estética nas obras, a que se possa nomear de a estética do modernismo.
O acontecimento foi, inegavelmente, o eixo para o entendimento do avanço da arte moderna nacional, sobretudo pelas discussões públicas negativas ou de apoio e pelos desdobramentos na obra de seus criadores. Enfim, a Semana de Arte Moderna inaugurou, formalmente, a manifestação coletiva e pública na cultura brasileira a favor de um espírito novo, em oposição à cultura e à arte conservadora, predominantes no país desde o século 19.
O Modernismo brasileiro não nasceu de um dia para o outro, num piscar de olhos. Já cinco anos antes, numa exposição em 1917, as telas de Anita Malfatti foram alvo de desconcertantes opiniões do público, dada a inspiração na ‘estranheza’ estética do vanguardismo europeu, onde estavam em voga o cubismo, futurismo, impressionismo, ferrenhamente combatidos por Monteiro Lobato.
Os debates que cercavam a renovação das artes já estavam presentes no meado de 1910, em revistas e exposições, como a de Anita Malfatti, em 1917. Quatro anos depois, a disposição de aproveitar o Centenário da Independência em oportunidade de autonomia das artes já ocupava a cabeça de Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia.
A Estudante (1915-1916), de Anita Mafalti. Acervo do Museu de Arte de São Paulo. (Commons Wikimedia).
Se o Modernismo desembarcou no Pós-Modernismo, é de se supor um pré-modernismo a germinar a Arte Moderna. Mas ele não alcançou o estatuto de movimento organizado. Grosso modo, predominava a reprodução do naturalismo, do parnasianismo, do realismo e do simbolismo europeus. Muito embora, no campo das Letras, encontremos autores de peso estilístico e ideias originais sobre o país – Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto e Monteiro Lobato –, com livros regionalistas progressistas e alguns outros dedicados à literatura política.
SÃO PAULO, OS BARÕES DO CAFÉ E OS MODERNISTAS
O café veio da África e, no Brasil, entrou pelo Pará. No entanto, graças à boa adaptação ao solo e ao clima do Vale do Paraíba, no Sudeste, abrangendo parte do território paulista e fluminense. São Paulo, seguido do Rio de Janeiro, torna-se, então, líder da lavoura cafeeira, espalhada em imensas propriedades rurais privadas – os ditos latifúndios dos ditos barões do café, que cresceram em importância política e social. Não à toa, São Paulo tornou-se um estado poderoso e o mais rico do país.
Inevitável a acelerada urbanização da capital paulista, e as classes trabalhadoras se organizavam, faziam greves, reivindicando melhores salários e condições de trabalho mais dignas. Esses embates sinalizam uma crise na República, que toma forma, corpo e voz nos anos 1920, servindo de inspiração para os questionamentos levantados na Semana de Arte Moderna. Ora, e quem são os agitadores do Movimento Modernista, senão os filhos das oligarquias cafeeiras!
A fortuna levou os barões a investirem na educação de seus herdeiros, enviando-os para frequentar faculdades na Europa. No entanto, muito mais do que a formação intelectual, a intenção desses fazendeiros era a manutenção do status social. O resultado é que muitos retornavam pouco interessados em ter uma profissão. Mas tiveram a oportunidade de ver, in loco, o que acontecia nos loucos anos 1920, em Paris, que, à época, concentrava jovens artistas da vanguarda iconoclasta da arte tradicional do Ocidente. Assim foi que os latifundiários do café terminaram – sem querer ou pretender! – por patrocinar o Movimento Modernista brasileiro.
AS ETAPAS DO MODERNISMO
Se a Semana de 22 foi um evento localizado, o Modernismo brasileiro foi um fenômeno de caráter e abrangência nacional. A partir dele, nada, na arte, continuou a ser como antes. O que melhor ilustra a brasilidade e a valorização do nacional do Modernismo na América portuguesa reside nas suas gerações ou fases, como nomeiam alguns.
A Fase Heroica – de 1922 a 1930 – tinha o propósito de revolucionar a estética, exaltava a nossa identidade, o nosso cotidiano, a brasilidade da nossa cultura, utilizando uma linguagem irreverente, ufanista e sarcástica, em contraposição ao parnasianismo, apesar de balizada nas obras renovadoras da Europa, à época.
Aboporu, de Tarsila do Amaral, obra ícone do Modernismo brasileiro. Óleo sobre tela, 1928.
Fonte: Folha Ilustrada (Commons Wikimedia).
Os artistas que nela se destacaram compunham o Grupo dos Cinco: Anita Malfatti (desenhista, gravadora, ilustradora, pintora e professora); Mário de Andrade (crítico, fotógrafo, historiador da arte, musicólogo, poeta e romancista); Menotti Del Picchia (cronista, ensaísta, jornalista, pintor, poeta e romancista); Oswald de Andrade (dramaturgo, ensaísta, escritor e poeta); e Tarsila do Amaral (desenhista, pintora e tradutora).
A Geração de 1930 – de 1930 a 1945 – foi abundante na poesia, e a prosa tanto urbana como regionalista (dedicada bastante ao Nordeste), cujo eixo era o Homem e o seu destino no mundo, demostrando clara inspiração na psicanálise freudiana. Da fase anterior, carregou a predileção por tópicos sociais e a aversão ao academicismo.
Na prosa, os principais escritores foram Érico Veríssimo, autor de Olhai os Lírios do Campo e O Tempo e o Vento; Clarice Lispector, com Perto do Coração Selvagem e A Paixão Segundo G. H.; Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, em que descreve a fome e a miséria dos retirantes nordestinos; Jorge Amado, autor de livros tanto regionalistas como urbanos, destaca-se com os romances O País do Carnaval, Cacau e Capitães de Areia; José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira, retratou a seca e a vida dos retirantes; José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho, obra que aborda o ciclo de açúcar nos engenhos nordestinos; e Rachel de Queiroz, autora de O Quinze, um comovente “tratado” sobre a implacável seca nordestina de 1915.
Clarice Lispector, por Maureen Bisilliat em agosto de 1969. Acervo IMS. (Commons Wikimedia).
Já na poesia, os autores e obras de maior relevância foram Augusto Frederico Schmidt, com os livros O Galo Branco e Estrela Solitária; Carlos Drummond de Andrade, com destaque para Alguma Poesia, volume publicado em 1930; Cecília Meireles, tida como poetisa grandiosa, compareceu com os livros A Festa das Letras, Batuque, Samba e Macumba e Viagem; o artista plástico escritor Jorge de Lima – o “príncipe dos poetas” – apresentou-se com o poema O Acendedor de Lampiões e os livros Poemas e Novos Poemas; Mario Quintana, o “poeta das coisas simples”, e é, dessa fase, o seu livro de sonetos A Rua dos Cataventos; Murilo Mendes, de cuja obra poética destacam-se Poemas, Bumba-meu-Poeta, Poesia em Pânico e O Visionário; e Vinícius de Moraes – apelidado por Tom Jobim de "Poetinha", dado o seu estilo lírico – que publica o seu primeiro livro de poemas Caminho para a Distância, seguido do extenso poema Ariana, a mulher.
Nas belas-artes, ou artes plásticas, os expoentes foram Cícero Dias, um dos precursores do abstracionismo e próximo do surrealismo, harmonizando os costumes pernambucanos com o espírito vanguardista; Ismael Nery, pintor cuja criatividade suscita o inconsciente característico do surrealismo; e Oswaldo Goeldi, que descortina a injustiça social, a morte, a pobreza, a solidão e o subúrbio em técnicas variadas como a aquarela, o desenho, a litografia e a xilogravura.
Autoretrato (1930), de Ismael Nery. Coleção MAM do Rio de Janeiro. (Commons Wikimedia).
No Rio de Janeiro, formou-se o Núcleo Bernardelli, frequentado por jovens artistas plásticos que, apesar de inovadores, eram os menos extremistas do Modernismo. Entre eles, Ado Malagoli, cuja pintura figurativa de cenas urbanas, naturezas-mortas, paisagens e retratos denuncia a adversidade social; Bustamante Sá, conhecido pelo uso de tons suaves de seus quadros foi um antiacademicismo avesso à pintura de ateliê e crítico da hierarquia dos gêneros; Joaquim Albuquerque Tenreiro dedicou-se à pintura de paisagens, naturezas-mortas e retratos; José Pancetti, afeiçoado aos cenários urbanos, às paisagens marinhas e aos retratos; Milton Dacosta, dos mais radicais do grupo, com telas de forte influência do construtivismo e do cubismo; Quirino Campofiorito, adepto da arte figurativa, dedicou a sua pintura à gente simples e ao trabalho: na tela O Operário, põe em relevo a fisionomia e as mãos calejadas dos trabalhadores.
Enquanto em São Paulo, criou-se o Grupo Santa Helena (núcleo da futura Família Artística Paulista), cujo maior mérito foi congregar alguns dos mais fecundos artistas plásticos do século 20, entre escultores e pintores autodidatas, oriundos de famílias proletárias. A estética era intermediária do Academismo e do Modernismo dos anos 1920. Aldo Bonadei é tido como um dos precursores da arte abstrata no país; Alfredo Rizzotti dedicou-se à pintura de paisagens e de naturezas-mortas e revelou maestria em seus autorretratos; a pintura de Alfredo Volpi proliferou no domínio da cor, a exemplo de suas conhecidíssimas telas repletas de bandeirinhas; Clóvis Graciano, sempre leal ao figurativismo, nunca aderiu ao abstracionismo na representação dos retirantes e outros temas sociais; Francisco Rebolo – o "mestre do meio-tom" – pintou cenas urbanas e suburbanas, naturezas-mortas, paisagens, retratos e autorretratos; Fulvio Penacchi, com a sua paleta em tons terrosos, como vista em Crucificação expõe toda a dramaticidade pela composição verticalizada; Manuel Martins, artista capaz de manter a visão primitivista, da qual resulta o grande encanto de suas telas e gravuras, mostrando o homem anônimo; e Mario Zanini se distingue dos demais por seu profundo e intenso colorido, quase ingênuo, e, tanto quanto Volpi, foi um dos maiores coloristas da pintura modernista.
Houve uma Terceira Geração, a Geração de 1945 ou Pós-Modernista, como descrevem Tristão de Athayde e Ivan Junqueira. Trata-se da última etapa do movimento. Em vista da discordância entre críticos, teóricos e estudiosos quanto ao período – se até 1960 ou a até 1980 – não será exposta neste texto. De toda sorte, o que dela se diz é ter se caraterizado pelo abrandamento dos ímpetos inovadores e revolucionários de 1922. É quando a radicalidade cede lugar a expressões artísticas menos contestadoras e mais convencionais. De certo é que, ao menos sob a minha análise, o que a Semana de Arte Moderna inaugurou está longe de se encerrar, haja vista a arquitetura, o cinema e o teatro.
REFERÊNCIAS