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À PROCURA DE HILDA HILST

03/09/2020 Mazé Torquato Chotil Literatura e Leitura

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Hilda Hilst. (Fonte: Acervo IHH). 

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

                                                                                                                                In Amavisse

  

Hilda Hilst, grande nome da literatura brasileira, considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras da língua portuguesa do século 20, teria completado 90 anos em abril, se estivesse viva (21/04/1930, Jaú-SP - 04/02/2004, Campinas-SP). Escreveu 22 livros de poesias, 12 de ficção e 8 peças de teatro. Foi traduzida para o francês, inglês, alemão, espanhol, italiano e catalão. 

Um monstro sagrado que teve influências de James Joyce e Samuel Beckett, escreveu sobre misticismo, insanidade, erotismo, libertação sexual feminina e, por décadas, esperou atingir o público, interagir com ele. Terminou atingindo-o e sendo consagrada por ele nos últimos anos de sua vida. 

Como é que não tinha lido nada dela até então?! Fui à sua procura nas páginas da Casa do Sol, sua morada por tantos anos, seu oásis, seu porto seguro, atualmente seu instituto. Li seus escritos e artigos, e a vi em fotos e em vídeos. Bela jovem, mulher e adulta que o tempo foi consumindo aos poucos. Saudada pela crítica: o norte-americano Thomas Colchie, professor de literatura comparada do Brooklyn College of the City University, diz que “o potencial e o impacto de suas palavras não têm nada semelhante, fora a experiência única de Guimarães Rosa, no domínio da língua portuguesa. Ela é, talvez, mais universal do que Guimarães”; Léo Gilson Ribeiro, Ph.D. em literatura comparada pela universidade alemã de Heidelberg, declarou em 1977: “Hilda Hilst é o maior escritor vivo em língua portuguesa”.

Com a atenção cada vez mais despertada, quis começar pelo começo, ou seja, de onde vinha, o que pensava, por que escrevia... Fiquei sabendo que era uma Almeida Prado que guardou o nome do Pai, Hilst, que veio com seu avô, imigrante da região da Alsácia-Lorena, leste da França, casado com uma fazendeira paulista da família Almeida Prado. Hilst era também nome de uma cidadezinha na Alsácia, que mudou de nome depois da Segunda Guerra. Entretanto, a Alemanha guarda este nome em um dos seus municípios. 

O pai de Hilda, Apolônio de Almeida Prado Hilst, era fazendeiro de café, jornalista, ensaísta e poeta que assinava com o pseudônimo de Luiz Bruma. Possuía uma beleza rara e teve uma bela história de amor com sua mãe; amor que não resistiu às mazelas do tempo. A avó dessa família tradicional não gostava daquela que o filho tinha escolhido e não via com bons olhos que vivessem juntos sem papel passado. A mãe de Hilda terminou se separando dele e da fazenda de Jaú quando ela tinha apenas dois anos. Quanto ao  pai, mostrava-se doente, esquizofrênico. Morreu louco. Na sua adolescência, entre 17 e 18 anos, ele a confundia com a mãe. Sua beleza intrigava e desconcertava Hilda, que construiu uma espécie de magia em torno dele. Foi por ele que começou a escrever aos seus 18 anos. Aos 20, teve seu primeiro livro publicado, Presságio, recebido com entusiasmo pelos poetas Jorge de Lima e Cecília Meireles.  

Hilda estabeleceu, com clareza,  a conexão entre o pai e a escrita, ao revelar que "Escrever é então para mim sentir meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração como ele fazia, ou a ter emoções com lucidez". Além de escritos dele guardados pela mãe, ela possuía também cartas, papeis, anotações dele. "O seu enlouquecimento foi para mim como um tiro de largada, uma impulsão à escrita”, reiterou a escritora à época. Depois, sempre procurou nos homens o perfil do pai; nunca se apaixonou de verdade; passou a vida procurando o pai idealizado. "Sua imagem continuou em mim, alimentando um desejo que nunca mais parou."

Fez direito na conhecida Faculdade de Direito da USP no Largo São Francisco, onde conheceu a amiga de sempre, a escritora Lygia Fagundes Telles. Se casou – e depois se descasou – para agradar à mãe; nunca teve filho; vivia cercada de animais, sobretudo de cachorros abandonados que recolhia. 

Antes de falar de sua obra, é preciso dizer que nos primeiros anos de sua vida adulta Hilda levava uma vida de boemia. Podia pegar o avião para passar um final de semana em Nova York, Paris, Monte Carlo, Roma... Onde tinha festa, badalação, ela estava, muitas vezes ao lado de nomes como Marlon Brando, Maria Callas... Vestia costureiros famosos... e, entre duas festas, lia Kafka, Kazantzákis, Simone Weil, Hermann Broch...  e escrevia poemasLevava uma vida movimentada que não lhe permitia se concentrar. Sentiu a necessidade de calma que procurou em suas casas de praia e de campo, antes de encontrar o lugar que viria a ser seu porto seguro, a Casa do Sol, onde se instalou com o escultor Dante Casarini, seu companheiro, quando tinha 33 anos. Teve quem a tachasse de esnobe, sacerdotisa, monja, só porque “queria pensar no que é real e urgente! (...) ...o importante é que aprendi a necessidade decisiva que cada um de nós tem de meditar profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras”.

Foi depois de ter escrito uma infinidade de poemas que, entre 1967 e 1969, produziu 8 peças de teatro. Uma delas premiada, mas todas com dificuldade de serem montadas. Em 1970, aborda a prosa, por achar que "o livro já tinha uma reformulação de linguagem importante. O Kadosh estava esboçado. Uma crítica portuguesa falou que na língua portuguesa não houve uma reformulação importante como essa."

Continuou a produzir na Casa do Sol, rodeada de seus cachorros, não raro com um cigarro na boca, fumaça ao redor, cercada de livros. Numa das fotos que vejo, em idade madura, guarda a mesma beleza daquela jovem de arco nos cabelos longos que ela foi. De que cor eram os cabelos? A foto em preto e branco não permite saber. 

A Casa do Sol foi construída em parte da fazenda materna, no município de Campinas, perto da paineira centenária, ao redor da qual foram feitas uma mesa e cadeiras de pedra. A casa em estilo colonial, com varanda e pátio interior, foi planejada por Hilda Hilst nos mínimos detalhes a fim de obter um espaço de inspiração e criação artística; um lugar para se concentrar e escrever e, nas horas vagas, passear pelos arredores apreciando a natureza, ouvindo os passarinhos e grilos, vendo a lua, as estrelas... em comunhão com a natureza. 

Nos finais de semana recebia os amigos... escultores, pintores, escritores... Grandes conversas rolavam; ela sempre com seu uísque com muita água. 

Trabalhou bastante, mais de 40 anos, mas o reconhecimento do público tardava. Por quê? Tinha se fechado longe da “civilização” na Casa do Sol? Deveria ter feito como a amiga Lygia Fagundes Teles, se candidatado à Academia Brasileira de Letras? Um dia, disse à Ligia: “Você está sempre aparecendo, é membro da Academia”. E ela lhe respondeu: “Mas a tua soberba é maior”, com o que Hilda concordaria.

Hilda, porém, desejava se comunicar mais com o público. Aos 59 anos, em uma entrevista, fala da procura por um pois “não adianta ter importância e não ter ninguém para te olhar.” Que artista não precisa? Ela imaginava que aos 60 anos estaria no coração do outro, mas constatou que poucos conheciam seu trabalho. 

Consegue chamar a atenção com seus textos, de cunho erótico, em A obscena senhora D., O Caderno Rosa de Lori Lamby e Contos D'Escárnio / Textos Grotescos. "Os leitores não advertidos podem levar um susto com este tipo de leitura, mas é pura literatura". Ela ganha público sobretudo, depois que a Editora Globo reeditou, em 2001, a totalidade de suas obras, que, a partir de então, passaram a ser encontradas em livrarias.

Como muitos autores importantes, não ganhou dinheiro com literatura. Dinheiro não é tão importante como é o tempo. Ganhou a eternidade com sua poesia de vocação filosófica, além dos inúmeros prêmios nos seus 50 anos de trabalho, entre eles, Jabuti (2), Assoiciação Paulista de Críticos de Arte (APCA) (2), Moinho Santista, Brasil Pen Club, Prêmio Anchieta.

Depois de sua morte, aos 73 anos, o amigo Mora Fuentes liderou a criação do Instituto Hilda Hilst (IHH), para a manutenção da Casa do Sol, seu acervo e o espírito de um porto seguro para a criação intelectual, onde pessoas são recebidas para visitação e artistas podem fazer uma residência no lugar inspirador e mágico.

 

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas as minhas ardências. 
E transmuta em palavra
Paixão e veemência”

                                                  Hilda Hilst  

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.