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Rio de Janeiro e São Paulo: seus dois ícones em diálogo com a cultura contemporânea.

26/02/2018 Devaney Claro Arte e Música

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O que tem o desenho destas duas calçadas a nos dizer sobre um tema atual e recorrente na cultura contemporânea?

Inspiração e apropriação cultural foram os temas abordados por mim numa exposição de fotografias numa galeria da cidade de Munique no final de 2017, em que o título era “Um diálogo fotográfico entre o Rio de Janeiro e São Paulo“, onde as duas fotos acima são expostas contíguas em diálogo. 

Uma imagem é como uma pessoa. Para se compreendê-la, tem-se que lhe dar atenção para apreender suas várias camadas de significados. Um desenho de uma calçada já tem em si um potente significado, pois nos leva a olhar para o chão, que muitas vezes passa despercebido, mas é ele que, sendo uma superfície plana horizontal, nos coloca num contexto local onde podemos nos deslocar ou parar para admirá-lo.

O famoso desenho da calçada da praia de Copacabana no Rio de Janeiro foi introduzido em 1906 pelo prefeito Pereira Passos, conhecido como grande promotor das reformas urbanas da então capital brasileira, inspirado nas grandes reformas conduzidas em Paris por seu prefeito Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) na segunda metade do século anterior.

A contraparte original da famosa calçada está na Praça do Rossio em Lisboa, Portugal, e foi inspirada nas ondas que surgem com o encontro das águas do Tejo com o Oceano Atlântico.

O desenho do calçadão de Copacabana corria perpendicular à calçada e mantinha-se em forma muito semelhante ao do Rossio até as reformas conduzidas nos anos 70, quando é reestilizado, com um novo alongamento e dinamismo, por Roberto Burle Marx (1909-1994) e passa, desde então, a correr paralelo ao mar de Copacabana, uma alusão às suas ondas. 

E o chão paulistano? O famoso “piso paulista” foi concebido pela desenhista Mirtes Bernardes em 1965 para um concurso promovido pelo prefeito Faria Lima para padronizar as calçadas da capital paulista. A desenhista confessa que se inspirou nas ondas do calçadão de Copacabana, sem querer copiá-las, mas estilizou o desenho com a geometrização do mapa do estado de São Paulo. Hoje o seu desenho é um símbolo da cidade de São Paulo.

O diálogo entre as duas imagens acima nos ensina que a inspiração é uma força primária para que uma obra exista. Ela pode vir de várias fontes. Como nos casos acima, as ondas causadas pelo encontro do rio com o oceano geram o desenho original português, e depois, por já existir em chão lusitano, é recontextualizado na capital da ex-colônia portuguesa criando uma nova significação, pois se muda o contexto, muda-se o sentido, como comprovou o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) com sua obra “Fountain” de 1917, uma das referências icônicas da Arte Moderna na Arte Contemporânea.

Esta questão é mais ampla e complexa se analisarmos estas “inspirações” dentro visão da apropriação cultural que hoje está muito em voga. Apropriaram-se os urbanistas de Pereira Passos de um bem cultural português? Talvez na época não houvesse a consciência cultural tão presente e vigiada no nosso Zeitgeist.

Porém, não podemos nos esquecer de que é uma característica própria da cultura brasileira o antropofagismo cultural, tematizado depois da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu Manifesto Antropofágico de 1928, tendo como símbolo a obra “Abaporu” da artista Tarsila do Amaral (1886-1973), que afirma que a cultura devora e digere o já conhecido e o estabelecido, e então em seguida, depois de tê-los processado, devolve-os com uma nova roupagem, como “o novo”.

Coisa semelhante ao que afirma Oswald de Andrade também pulsava em almas sensíveis e criativas de outras épocas e lugares como, por exemplo, na do grande poeta lusitano Luís de Camões (1524-1580) que fixa este sentimento em um de seus sonetos:

„Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança:

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.”

Esperemos que as mudanças nos nossos tempos nos levem a caminhar por calçadas menos sinuosas e precárias, onde possamos parar para vê-las e admirá-las e, assim, expandir nossa visão e compreensão, tendo o sentimento de que o belo da inspiração está muito além da apropriação, pois esta, em si, já está no processo antropofágico da passagem do próprio tempo.

E o que diz o piso paulista ao calçadão de Copacabana? Eu estou no chão de São Paulo por você existir no Rio de Janeiro à beira-mar, no Atlântico, que em sua margem lusitana nos une ao Tejo e nos leva a passear no Rossio.

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Devaney Claro

Artista visual carioca, vive em Munique desde 1998. Estudou pintura na EBA da UFRJ e Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ. É formado em Letras (Português, Inglês e Literaturas) pela UVA-RJ. Mestre em Artes (Arte Educação, História da Arte e Arqueologia Clássica) pela LMU-Ludwig Maximiliam Universität, Alemanha, desde 2011. Membro da Associação Internacional de Artes Plásticas pela UNESCO e da Associação Nacional de Artistas Profissionais da Alemanha.