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POIS É SÃO JOÃO OUTRA VEZ

24/06/2019 Eveline de Abreu Raízes Culturais

Será que uma festa de um povo novo como somos, inscrita bem no fundo do folclore brasileiro, é mesmo tão brasileira? As tradições são nossas, sim. Mas, ao mesmo tempo, fusão das culturas mais imediatamente reconhecidas: a da terra (indígena), a submetida (africana) e a colonizadora (portuguesa), por sua vez portadora do que ela própria tinha arrebanhado de outras de outros cantos ibero-europeus que, também e por sua vez, já carregavam traços de outros confins – a exemplo da celebração do solstício de verão (o mais longo dia do ano), na Grécia pagã, que coincide aproximadamente com 24 de junho, dia consagrado a São João Batista. 

FESTA DO INTERIOR - Sem falar da canjica ou do amendoim cozido na casca, tirando balões e bandeirolas e postos à parte o baião e o xaxado, por que seria o São João uma festa dos cafundós do sertão, do camponês do Brasil profundo! 

Desde muito tempo, no hemisfério Norte, eventos festivos marcam a chegada do verão e celebram a dádiva de frutos e flores da terra. Mais remotamente ainda, a fogueira – antes de queimar em homenagem a São João, como bem cantou Luiz Gonzaga na música São João na Roça – servia às gentes das culturas celta e greco-romana para agradecer, aos deuses, a fartura da colheita. Aqui, não se pode esquecer que o Brasil foi, por vários séculos, sobretudo sertanejo, não apenas no período colonial, como depois de sua independência.

La Fête de la Saint-Jean, óleo sobre tela (1875) – Philadelphia Museum of Art Blue. (Fonte: Commons Wikimedia / File: The Feast of Saint John).

 

“QUERO DANÇAR COM VOCÊ” – De onde vêm certas palavras, que todo mundo sabe o que querem dizer, mas ninguém usa fora das festas de junho? Um dia, já na França, foi que prestei atenção à possível analogia entre alavantú e on avance tous (avancemos todos); de ampassâ com en passant (passando); e anarriê com en arrière (para trás). Corruptelas que nada mais são que reproduzir – falando ou escrevendo – palavras e expressões do jeito que deu pra entender. E o Brasil tem glossários e glossários repletos destes deliciosos achados. 

Se as festas de junho, em honra dos santos Antônio, João, Pedro e Paulo, nos chegam de Portugal, a quadrilha dançada no dia de São João tem franca e declarada inspiração *num tal quadrille (*palavra masculina, no original). Surgida na França, a coreografia para quatro pares não demorou muito a ser o xodó não só dos salões do high society do restante da Europa, como nos bailes campestres. 

Segundo uma tal de rainha Hortense “uma quadrilha de sociedade devia repousar unicamente sob o brilho e a elegância dos trajes, a harmonia das cores, o bom gosto das danças e a perfeição do conjunto” (Mémoires, Paris, 1927, tome II, p. 138). No entanto, sua folclorização alterou a dança de maneira contundente, tanto na Europa, como fora do continente.

Gravura de Lebas (1818), ilustrando o Pas d’Eté, onde uma dama suavemente levanta a barra do vestido. (Fonte: Commons.Wikimedia /File: Quadrille Ete Lebas ca 1820).

 

ROUPA DE DANÇAR E DE COMO ME CASEI A PRIMEIRA VEZ – Na hora do arrasta-pé no salão de chão batido, o traje típico nada mais é que a paródia que transfigura as sedas, veludos e tafetás dos vestidos dos bailes europeus em fantasias de chita colorida, armadas pelos babados aparentes das fartas anáguas de morim. 

 

“Fagulhas, pontas de agulhas 

Brilham estrelas de São João 

Babados, xotes e xaxados 

Segura as pontas meu coração” 

 Festa do Interior, composição de Moraes Moreira e Abel Silva.

 

Como isso tudo me diz muito e de muito perto, vou contar sobre minha primeira roupa de matuta (assim se chamava no Ceará), tabaroa, como dizia minha mãe (nascida na Bahia), e caipira, como conhecida em outros lugares do país. Tratava-se de um vestido de estampa verde forte e azul celeste, em que cada barra dos babados era ornada por fitas largas de cetim das mesmas cores. 

Ele foi feito pelas mãos engenhosas de dona Maria – costureira querida da família a vida inteira – e, todos os anos, até o vestido me apertar o tórax, me punham em cima da mesa da sala para medir a altura da bainha, ritual que se repetia conforme ia crescendo, graças ao senso de economia materno – o que me matava de tristeza e, na contraofensiva, rendia malcriações sem fim.

Rio de Janeiro – Festas Juninas 1959). (Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo).

 

Se aquela matuta me acompanhou por longo tempo, aos 10 anos, tive a ideia redentora de promover uma quadrilha, e a varanda lá de casa era o lugar dos ensaios. A astúcia me dava autoridade suficiente para ser a noiva, usar rouge e baton e me casar com quem bem entendesse (no caso, o vizinho da esquina), para o que pude, finalmente, trocar o vestido apertado pelo de primeira-comunhão adaptado. Foi por este ardil da infância que me casei com o que julgava ter sido meu primeiro amor, sob o anúncio do comandante do arraial:  

– Meus senhores e minhas senhoras, que presentes aqui estão, vai casar Chica Dengosa com Pedrinho Foguetão!

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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.