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Orquestra Ouro Preto celebra a poesia do encontro de Fernando Brant com Milton Nascimento

13/09/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

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Álbum gravado ao vivo no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, em 9 de setembro de 2018. (Foto: Divulgação).

Imagine uma sinfônica batizada com o nome de uma cidade linda, etérea, delicada, feita para contemplação sem fim, cravada de histórias de amor e também de muita luta, desde os tempos do Brasil-colônia da mineração irrefreável... Uma orquestra que se chama Ouro Preto leva consigo, já de nascença, na alma de seus músicos, a leveza como um dom, mas também o desafio como sina. Fazer as pessoas felizes e contribuir como arte para a reflexão incessante como condição para o crescimento humano é um fator imprescindível e faz as cidades muito mais belas. 

A Orquestra foi fundada há 19 anos. Regida por Rodrigo Toffolo, ela acabou de se lançar há pouco, com seus violinos, cellos, violas, cordas e instrumentos de percussão, à nobre tarefa de homenagear o letrista Fernando Brant, ilustre parceiro e porta-voz de muitas das melhores melodias criadas por Milton Nascimento. A sinfônica pôs na praça um álbum e dvd intitulados “Quem Perguntou por Mim”, que ressaltam em doze temas arranjados por Mateus Freire o brilhantismo musical que Brant e seu amigo “Bituca” conseguiram atingir em décadas e décadas de amizade. Trata-se de uma vivência criativa que só foi interrompida, mesmo, pela morte do poeta e jornalista em 2015, aos 68 de idade. 

"Eu só sei que há momento que se casa com canção." (Foto: Felipe Tadeu). 

Antes de chegar a esse novo projeto dedicado à dupla de compositores, a Orquestra Ouro Preto já tinha trabalhado com a obra de Alceu Valença em “Valencianas” em 2014. Realizou também “The Beatles”, tributo ao célebre quarteto liverpooliano que tanto inspirou a turma do Clube da Esquina, de Beto Guedes a Wagner Tiso, além de trabalhos sobre a obra de Antonio Vivaldi, Astor Piazolla, e do pernambucano Antônio Nóbrega, revelado no inesquecível Quinteto Armorial. “Quem Perguntou por Mim” era para ter sido gestado em conjunto com o próprio Fernando Brant, que topou a iniciativa. No encarte do disco, Paulo Rogério Lage, produtor executivo, conta como a ideia surgiu: “Em 2014, assentados lado a lado com Tavinho Moura, na cerimônia de outorga, pela Universidade Estadual de Minas Gerais a Milton Nascimento, do merecido “Doutor Honoris Causa”, ouvíamos discursos sucessivos, enaltecendo a unanimidade nacional que é Milton, sua obra e sua voz. Como doutores não cantam, mas falam, eram os poemas de Brant que se ouviam sem parar. Rindo, perguntei a ele (Brant): a homenagem é ao Milton ou a você?". E daí surgiu o convite, feito a Rodrigo Toffolo e Brant. O destino, no entanto, levou o escritor antes da hora.

Como seria impensável homenagear um letrista sem cantar os versos de suas canções, a sinfônica teve a bela ideia de agregar a cantora Leopoldina para interpretá-los, em faixas como a que dá título ao disco, a “San Vicente”, a “Canções e Momentos” e essa aqui também, ó: "Encontros e Despedidas". A cantora, que tem dois álbuns lançados, o “Leopoldina & Dudu Nicácio” (2005) e “Leopoldina” (2010), deu novos timbres cromáticos às músicas, cumprindo com doçura e técnica a responsabilidade de encarar, por exemplo, “Quem Perguntou por Mim”, gravada antes por duas das vozes mais privilegiadas do Brasil, a do próprio Milton e a de Gal Costa. Leopoldina, nascida em Campos Gerais, tinha identidade com a causa, conforme declarou à imprensa: “Aos 18 anos, desembarquei em Belo Horizonte e me deparei com Brant. Abracei ele e foi emocionante. Minha vida é permeada pela poesia de Brant. São músicas lindas e marcantes.". 

 

O fruto do encontro 

Fernando Brant e Milton Nascimento. (Foto: Divulgação).

Para quem conhece a grandeza da obra musical eternizada por Fernando Brant e Milton Nascimento, fica difícil imaginar como os dois se conheceram no ano de 1965: dentro de um ônibus, em Belo Horizonte. Conforme depoimento do letrista à Liana Fortes, publicado em volume da Coleção Gente dedicado a ele, em edição da Universidade Estácio de Sá, RJ, Milton logo percebeu que viria a ser amigo de Fernando, mesmo sem terem se falado direito. Milton, no entanto, já era manjado pelo escritor nascido em Caldas: “Eu já tinha tido um primeiro contato com o Bituca num show em Belo Horizonte, o Opinião, do qual participaram o Zé Kéti, o João do Vale e o Roberto Nascimento, que era violonista. Por um motivo qualquer, às vésperas da apresentação, o Roberto avisou que não poderia ir. A produção procurou alguém para substituí-lo e chamaram o Bituca. Só que, no dia do espetáculo, o Roberto apareceu. Para compensar, eles abriam espaço para o Bituca tocar três músicas. Observei que ele tinha uma claque organizada, que o aplaudia e incentivava, e que já compunha.”, contou Fernando Brant, que garante também: “Quando escrevi ‘Travessia’, minha primeira parceria com Bituca, nunca tinha pensado em ser compositor, embora gostasse muito de cinema, música, teatro e poesia. Fiz a letra para um amigo, sem qualquer pretensão. Sem que soubéssemos, ela acabou inscrita num festival (NdR: por Agostinho dos Santos) e mudou completamente nossos destinos.”. 

A admiração de um pelo outro perdurou até o fim. Fernando escreveu um dia, numa crônica para o jornal Estado de Minas, o seguinte: „A usina Nascimento agrega toda a história de Minas, todo o caminho de escravos pelos mares, todas as culturas que fazem o Brasil. Todo o passado, todo o presente. O que ele faz e canta é sempre síntese, é sempre sólido, é sempre belo. Eu, que conheço um pedaço grande de sua história pessoal, que frequentei com ele os quintais da memória familiar, que caminhei estradas pedregosas em sua companhia, até hoje ainda me surpreendo com suas inovações. De onde vêm tanta energia e arte?”. No dia 13 de junho de 2015, Milton declarou à imprensa, depois da partida do amigo: “As coisas que teria para dizer sobre o Fernando estão escritas em nossas canções e descritas nas vozes das pessoas que as colocam em suas bocas, na emoção mais profunda que toca o coração. Não estou falando somente de nós, que temos o privilégio do microfone, mas sim de todos juntos, seja no encontro generalizado de vários olhos e sentimentos, mas também no íntimo de cada um. Do amor de irmãos, de amigos, de amantes e companheiros. É pureza rara e muita beleza. Quando diz uma coisa, ele acredita mesmo. Alma gêmea dos magos, alimento das estrelas, som. Mais que tudo, amigo...”.

No novo álbum e no dvd da Orquestra Ouro Preto ”Quem Perguntou por Mim”, os ouvintes têm uma ótima oportunidade de apreciar o legado da dupla de compositores. 

 

Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar) 

Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira  o motorneiro parava a orquestra um minuto

Para me contar casos da campanha da Itália

E do tiro que ele não levou

Levei um susto imenso nas asas da Panair

Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair

E lá vai menino xingando padre e pedra E lá vai menino lambendo podre delícia

E lá vai menino senhor de todo o fruto

Sem nenhum pecado sem pavor

O medo em minha vida nasceu muito depois

Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair

Nada de triste existe que não se esqueça

Alguém insiste e fala ao coração

Tudo de triste existe e não se esquece

Alguém insiste e fere o coração

Nada de novo existe nesse planeta

Que não se fale aqui na mesa de bar

E aquela briga e aquela fome de bola 

 

E aquele tango e aquela dama da noite

E aquela mancha e a fala oculta

Que no fundo do quintal morreu

Morri a cada dia dos dias que eu vivi

Cerveja que tomo hoje é apenas em memória dos tempos da Panair

A primeira Coca-Cola foi me lembro bem agora

Nas asas da Panair

A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo nas asas da Panair 

 

Em volta desta mesa velhos e moços

Lembrando o que já foi

Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual

Em volta dessas mesas existe a rua

Vivendo seu normal

Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais

Em volta da cidade 

 

Matéria dedicada pelo autor à Fátima Pinto Moreira. 

 
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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.