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O Tempero Baiano na Pesquisa Científica

28/03/2019 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras

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Foto: Acervo Pessoal / Divulgação

Desde pequena, Alice Kiperstok sabia o que queria ser: pesquisadora. Ela não se lembra de ter visto imagens de cientistas mulheres e pesquisadoras quando criança, já que a categoria era sempre representada por homens nos livros e desenhos infantis e na vida real. Seu pai também foi pesquisador e sua principal referência, e não ter modelos femininos em que se espelhar não a impediu de se imaginar neste papel. Aliás, ter a coragem de fugir de estereótipos é uma das características mais marcantes de Alice, junto com sua alegria e a capacidade de se adaptar facilmente.

Esta baiana que se formou em biologia e fez doutorado em biotecnologia, trabalhou em um dos centros de pesquisa de ponta mais equipados do mundo, que – pasmem - fica no Brasil, a Fio Cruz Bahia. E continuaria lá por mais tempo caso não tivesse a coragem de mais uma vez fugir do estereótipo e mudar seu tema de pesquisa ao aceitar uma bolsa de doutorado na Alemanha. Segundo ela, esta é uma prática nada comum no mundo acadêmico, principalmente no Brasil. Sua expertise adquirida em terras brasileiras contribuiu para encontrar soluções inovadoras no projeto Alemão. Ela confessa que teve que superar a autossabotagem. “A gente tem uma tendência de se achar inferior quando vem para a Europa por ser Brasileiro, e nós do Nordeste temos uma tendência de nos acharmos inferiores por sermos nordestinos”. Afirma que chegou na Alemanha de cabeça baixa, achando que todo mundo era melhor do ela e, claro, com saudades da família. Descobriu que ninguém em sua equipe de pesquisa tinha o mesmo preparo e tempo de trabalho na bancada do laboratório que ela e aprendeu que temos que abraçar nossas qualidades e defeitos para sair do lugar de vítimas.

Em sua bem-sucedida pesquisa, ultrapassou barreiras mais uma vez. Fugindo do padrão das pesquisas acadêmicas, seu projeto foi escolhido por investidores europeus e se tornou uma startup de biotecnologia.

Hoje Alice divide seu tempo entre a Alemanha e a Espanha. A jovem cientista sonha em voltar para o Brasil no futuro e retribuir todo o investimento que a sociedade depositou em seu talento, contribuindo com o desenvolvendo de novos cientistas e biólogos de ponta no país.

Em entrevista exclusiva para o Blog BRmais, Alice conta mais sobre o seu projeto e nos faz refletir sobre estereótipos, quebra de paradigmas, novos modelos, autoestima e as características positivas de ser brasileiro.

Alice, você é bióloga, pesquisadora com patentes registradas em seu nome e, mais recentemente, seu projeto de biotecnologia recebeu investimentos para se tornar uma startup. Como resume a sua trajetória até aqui?

Eu sempre quis ser pesquisadora. Possivelmente por influência do meu pai, também pesquisador. Mas não sabia o que exatamente eu gostaria de fazer. Já quis ser bióloga geneticista, já quis ser bióloga para ficar no meio do mar olhando golfinhos, já quis ser bióloga para trabalhar com vermes. Em um momento da minha vida, eu fui fascinada por vermes... Enfim, comecei a estudar biologia e, logo no segundo semestre da faculdade, iniciei um estágio na Fio Cruz – Bahia. Muita gente não sabe, mas a Fio o Cruz é um centro de excelência de pesquisa de ponta.

Conte-nos um pouco mais sobre a Fio Cruz e o trabalho que este centro desenvolve.

A gente tem uma tendência de se achar inferior quando vem para a Europa por ser brasileiro. E, nós do Nordeste, temos uma tendência de nos acharmos inferiores por sermos nordestino. Então é bom falar e enfatizar que a Fio Cruz - Bahia é um centro de pesquisa de ponta que compete em pé de igualdade com os melhores centros de pesquisa de ponta do mundo, incluindo Estados Unidos e Alemanha. A Fio Cruz tem uma coisa fantástica, ela te treina para fazer pesquisa de excelência. E isso foi fundamental para a minha formação científica. 

Mas por que, então, você decidiu mudar de área e fazer seu doutorado na Alemanha?

Biologia é um campo muito amplo; eu tinha trabalhado apenas com uma única área: biotecnologia em saúde. Então, quando surgiu a oportunidade de trabalhar na área ambiental e industrial, eu fui e me apaixonei. Quando eu estava me aplicando para o Doutorado, avaliando as possibilidades, vi uma oportunidade em um laboratório na Alemanha que eu já conhecia. Era para trabalhar em um projeto de pesquisa na em área em que trabalho hoje. Com este projeto, passei na seleção de bolsas de doutorado, uma parceria do Governo Brasileiro e Alemão.

E como foi tomar esta decisão? 

Esta mudança na minha vida não foi fácil. Precisou de muita coragem da minha parte. Mudar de área quando se trabalha com pesquisa de excelência não é visto com bons olhos, principalmente no Brasil. Mundialmente, já começam a surgir linhas de pensamento e discussões mostrando a importância da interdisciplinaridade, mas isso é uma quebra de paradigmas. Sei que, por ser diferente do padrão, esta tomada de decisão pode gerar limitações para a minha vida acadêmica no Brasil, mas acho importante expor esta questão e tocar no assunto. Muita gente continua projetos, mesmo desmotivada, só porque este é o que se definiu um dia. Perderam a paixão, que é fundamental em um pesquisador. 

Você se arrependeu? 

Por mais difícil que tenha sido, eu não me arrependo. Esta minha multidisciplinaridade já contribuiu positivamente para meu trabalho aqui na Alemanha. Por exemplo, eu consegui aplicar técnicas que eu aprendi na Fio Cruz na área de saúde para solucionar problemas no laboratório na Alemanha para os quais ninguém tinha conseguido encontrar uma solução antes. Além disso, esta visão mais ampla permitiu que eu desenvolvesse uma autoconfiança muito grande.

Conte-nos um pouco do seu projeto. 

Minha pesquisa é um projeto de biotecnologia ambiental com algas. Estas plantinhas produzem um pigmento avermelhado, chamado astaxantina, que é utilizado para dar cor a alimentos como o salmão e o camarão. Este pigmento é bastante utilizado na criação de peixes e crustáceos, porém o que se usa hoje em dia nestas criações é uma versão sintética do pigmento, produzida a partir de um derivado petroquímico, o que o torna muito mais barato, mas também muito menos saudável. Isso impacta negativamente a saúde humana, que hoje consome salmão com este pigmento artificial. Além disso, a versão natural deste pigmento é bastante procurada por um outro mercado, o de suplementos nutricionais, pois ele possui um poder antioxidante muito grande. Existem, ainda, pesquisas que mostram a utilidade deste pigmento a partir das microalgas na indústria de cosméticos e indústria farmacêutica. 

No meu projeto, eu desenvolvi um novo processo de produção e a extração natural deste pigmento. Esta inovação, cuja patente de inventor é minha, tem um custo bem menor e uma produtividade maior, o que contribuiria para uma maior acessibilidade do produto natural e uma vida mais saudável, inclusive competindo com os pigmentos artificiais.

E como um projeto acadêmico virou uma startup? 

Todo mundo começa a fazer pesquisa achando que vai mudar o mundo, mas não necessariamente ela sai do papel. Claro que, na área de saúde, cada descoberta é fundamental para salvar vidas, mas o processo é lento. Então é muito difícil você ver um projeto seu sair da bancada e chegar à sociedade. Existe uma distância grande entre a universidade e o mercado. 

Ter a possibilidade de tirar o meu doutorado do papel, participar de cada etapa do crescimento dele e ver ele de fato tornar-se útil foi uma realização enorme para mim. E meu professor e orientador enxergaram esta chance no meu trabalho. Além disso, ter sido chamada de volta para trabalhar com esta pesquisa, agora em uma startup, também foi um reconhecimento do meu trabalho. Apesar de eu ser a inventora da patente, meu professor e os investidores até poderiam contratar outra pessoa, pois a dona da patente é a universidade. Porém eles me contrataram, apesar das complicações que não ter a cidadania europeia poderia acarretar. Acho que isso mostra que estou no caminho certo. 

E como é para uma pesquisadora e cientista se aventurar em uma startup? 

Ver seu produto sair do laboratório para a vida real é fascinante, mas também muito desafiador. Primeiro, é uma mudança de “mindset” (forma de pensar): no laboratório, o ambiente é controlado; em uma startup, temos que lidar com a instabilidade. 

Além disso, as pessoas acham que vida de startup é glamourosa. Não é bem assim. Um dia você acha que resolveu o problema e no outro quer sentar no chão e chorar. Tem que lidar com as frustrações do dia a dia, mas também não deixar a peteca cair. Aliás, o que tem de igual no laboratório e na startup é esta paixão de querer ver a coisa acontecer. Isso é igual! 

O que você acredita que seu lado brasileiro trouxe de positivo para seu trabalho na Alemanha? 

A primeira coisa que eu empreguei aqui quando cheguei foi o trabalho em equipe. Não tinha. 

E isso é algo que se aprende muito no Brasil, até pelas limitações de recursos. Nós dividimos muito os aprendizados uns com os outros e isso contribui diretamente para os resultados das pesquisas. Eu fiquei muito chocada de ver como as pessoas no meu grupo na Alemanha trabalhavam cada uma na sua caixinha. Ninguém discutia os protocolos e as descobertas. Atuavam de forma muito individual, querendo conquistar os seus espaços sozinhas. No começo, eu ficava calada, mas, assim que comecei a conhecer mais as pessoas, perguntava o que elas faziam, mostrava a minha vulnerabilidade e pedia ajuda para um determinado problema de pesquisa, trocava descobertas e expertise... E eu tenho a impressão de que acabei contagiando a todos, pois as pessoas passaram a dividir mais, perguntar e trocar conhecimento entre si. 

A outra coisa é essa capacidade de ser flexível e adaptar recursos. Por exemplo, eu vinha com uma bagagem de laboratório de saúde e propus usar uma técnica desta área para solucionar um problema de biotecnologia ambiental que meu time alemão enfrentava. Esta técnica utilizava equipamentos que estavam em outros departamentos. Fui atrás, falei com o outro professor... ele me contou que tinha o equipamento, mas estava encostado em um canto lá do laboratório de botânica... busquei o aparelho e tive que, inclusive, mexer no espaço todo para montá-lo... e deu certo!! Funcionou!

Esta coisa de saber improvisar ajuda em pesquisas dentro e fora do Brasil? 

A gente tem uma flexibilidade muito grande que ajuda muito na minha profissão. Tem algo que sempre falamos no Brasil: “se você sabe fazer pesquisa no Brasil, você faz em qualquer lugar”. Porque a gente aprende a achar soluções. Não adianta... ficar sentada reclamando não resolve. Assim você não vai conseguir ter um produto do seu trabalho. E saber lidar com os imprevistos foi que me levou a buscar a solução neste caso que eu contei. Pensei: “preciso olhar para este biofilme (da plantação das algas) e ver o que eu faço”. 

E qual é a principal característica da Alice? 

Sou uma pessoa que se adapta muito fácil e muito aberta às diferenças. Isso foi fundamental para meu sucesso na Alemanha. E isso, com certeza, é algo bem brasileiro - esta adaptabilidade e a capacidade de encarar às mudanças e dificuldades de forma leve. 

Tem outra coisa também muito brasileira: eu sou muito alegre e feliz! Se perguntar para o laboratório qual a característica da Alice, eles vão dizer: “ela está sempre conversando, rindo, cantando”. Eu levo a vida de uma forma leve, por mais dedicada e estressada que eu possa estar com o trabalho. Busco esta alegria de encarar as coisas de forma bem-humorada. 

Você falou de ser pesquisador e quebra de paradigmas e novos caminhos e possibilidades. Qual é a sua experiência em ser uma mulher pesquisadora? 

Nunca fui assediada nem nada desde tipo, mas acho que temos que valorizar, sim, as pesquisadoras cientistas e professoras também, pois ciência não se faz sem ensino. 

Eu lembro que no meu primeiro contanto com cientistas, na iniciação científica, os chefes de laboratórios eram todos homens. Tinha mulheres (inclusive fui orientada por uma profissional excelente e muito forte), mas os chefes eram homens e, quando tinha mulheres, elas eram sempre associadas aos homens. Também tinha uma pressão do trabalho em relação às mulheres. Eu já ouvi muitos comentários do tipo “laboratório com muita mulher não funciona, pois mulher não aguenta a pressão” ou “mulher chora no laboratório”. 

Você observa alguma mudança neste sentido? 

Acredito que hoje as mulheres ganharam mais espaço. A gente está, devagarinho, conquistando e crescendo. Na Espanha, eles promovem a noite da “mulher pela ciência”, dando mais visibilidade para nós, mas a máxima do machismo vale nesta área também. Por exemplo, o homem que se impõem é visto de forma positiva; a mulher que se impõem é prepotente. 

Outra coisa que complica é a dedicação de um pesquisador de excelência à carreira. Ela é absurda e conciliar vida de cientistas com ser mãe, muitas vezes, não é bem compreendido no Brasil. Na Alemanha tem uma flexibilidade maior em relação a ter filhos, mas, mesmo assim, a carga está sempre maior na mulher. 

Dizem que a mulher cientista vive de trabalhar, “dorme de calça jeans”, é “mal-amada” ou que “não tem família”. Se ela se porta de forma firme e batalha pelo que ela quer, é porque ela é determinada e boa profissional, e não porque ela não tem família. Inclusive eu sou casada e, diferente do estereótipo, foi meu marido quem me acompanhou nesta oportunidade que tive. Sou bem-amada.

Para terminar: quais seus planos futuros? 

Neste momento, espero que a gente conclua esta primeira etapa e rodada de investimentos da startup e entre na segunda. E que venham mais desafios... para que a gente possa vencer todos. Eu também tenho uma grande vontade de voltar para o Brasil e devolver tudo aquilo que o país investiu em mim. Eu fiz universidade pública, tive bolsa de pesquisa... quero poder voltar para a minha universidade e retribuir, desenvolvendo novos pesquisadores e biólogos não cientistas. 

Depois de ter feito mestrado, doutorado e ter passados anos atrás de bancadas de laboratório... qual o seu melhor aprendizado até agora? 

Meu maior aprendizado nesta trajetória até aqui foi que temos que abraçar as nossas qualidades e defeitos para crescer e sair do lugar de vítima. Isso foi o que mais eu aprendi até aqui, saindo destes estereótipos e tendo coragem de mudar.

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Beatriz Mello

Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.