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Nheengatu - Língua Brasílica

28/01/2018 Jamile do Carmo Raízes Culturais

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Ilustração: Jamile do Carmo.

Na época do “achamento do Brasil“, estima-se que viviam na Terra Brasilis, como então era chamado o país pelos estrangeiros, cerca de 8 milhões de indígenas. É claro que cada tribo falava um idioma diferente, e estas línguas eram conhecidas como Línguas Gerais. Com a vinda dos primeiros jesuítas, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, em 1549, inicia-se um capítulo muito especial na história do Brasil, principalmente no que diz respeito à educação, claro que dentro dos moldes europeus. Empolgados com as descobertas de outras terras durante o período das grandes navegações do século XVI, os integrantes da Companhia de Jesus ocuparam-se firmemente no propósito de catequisação dos povos indígenas no Novo Mundo (em outros países latino-americanos também), até porque estavam preocupados com a expansão do protestantismo de Martinho Lutero.

Mas a pergunta é: como catequisar sem conhecer a língua? Aprender a língua dos indígenas foi o primeiro passo, o problema era que, em algumas delas, não havia pronomes possessivos nem outros termos capazes de explicar a complexidade bíblica e ainda havia muitos dialetos. Para facilitar as coisas, o jeito então foi fazer uma espécie de “fusão“ entre o Português e a língua Tupi, que era a língua mais falada na costa brasileira, onde os jesuítas se concentraram. Desta mescla surge então o Nheengatu que em tupi significa “língua boa“, e que também ficou conhecida como Língua brasílica. Ela pertence ao tronco linguístico tupi-guarani e aos poucos foi sendo sistematizada pelos jesuítas e imposta a outros povos, como por exemplo na Amazônia. Padre José de Anchieta, um dos jesuítas mais famosos, publicou em 1595 o livro Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil; ele também traduziu muitos textos e orações. Outra interessante publicação foi feita pelo padre português Luís Figueira em 1621: Arte da Língua Brasílica. Como se vê, embora as línguas indígenas fossem ágrafas, surgiram livros didáticos e até mesmo gramática para fundamentar e difundir este conhecimento linguístico. Vale ressaltar que no projeto dos jesuítas, foram as crianças indígenas, os curumins, o foco principal da atenção; pois elas não só aprendiam muito rapidamente como também se tornavam multiplicadores potenciais.

No ano de 1759, o Marquês de Pombal, temendo o crescente poder dos jesuítas que, entre outras coisas, combatiam o lucrativo negócio da escravização dos povos indígenas, dissolveu a ordem da Companhia de Jesus. Ela foi extinta tanto no Brasil quanto em Portugal (só em 1814 voltou a existir), fazendo com que todos seus membros fossem expulsos do Brasil. A língua Nheengatu tornou-se proibida! E assim, aos poucos foi decrescendo, também devido à chegada mais intensa de portugueses ao Brasil.

Mas há uma outra face da moeda: como o trabalho dos jesuítas foi encarado por muitos como “genocídio cultural“, o Nheengatu também chegou a ser “mal visto“ na época colonial. Hoje, ao contrário, representa uma referência histórica e identitária para muitos povos indígenas do norte. O interesse por sua aprendizagem tem inclusive crescido, chegando-se a oferecer cursos em algumas universidades, como é o caso da USP. Atualmente, cerca de 19 mil pessoas falam ainda o Nheengatu no norte do Brasil, especialmente os caboclos.

Você sabia que no Português brasileiro existe mais de 10 mil vocábulos herdados dessa língua geral? Principalmente nomes de cidades. Aqui vão alguns exemplos: mingau, maracuyá (maracujá), kukuera (capoeira), kuya (cuia), kapiwara (capivara), Jaciara (luar), Araraquara (toca da arara), Bauru (cesto de frutas), Botucatu (bons ares), Guaratinguetá (garças brancas), Ijuí (rã d'água), Itú (cachoeira), Araxá (planalto), Jundiaí (rio dos bagres), Paraguaçu (rio grande), Sorocaba (terra rachada), Votorantim (colina branca) etc.

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Jamile do Carmo

Autora e professora de Português na Friedrich- Alexander Universität (FAU), em Erlangen, Alemanha. Mestra em artes visuais pela UFBA e doutoranda em estudos linguísticos na FAU. Natural de Cruz das Almas (BA).