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Ney Matogrosso

07/04/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

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Foto: Luiz Fernando Borges da Fonseca

A lembrança mais antiga que guardo de Ney Matogrosso, em sua primeira aparição diante dos meus olhos de guri, foi de puro encantamento. Aos dez anos de idade, as lendas e os contos fantásticos dos irmãos Grimm ainda faziam parte, de forma intensa, da minha maneira de perceber o mundo, atiçando outro tipo de lucidez, a total fascinação pela Natureza, e fomentando o senso, que permanece até hoje, da irmandade que se sente quando se está no colo dela. 

A música que o principal intérprete da banda Secos & Molhados transmitia, de corpo e alma e máscara, me chegava da maneira mais original que conhecera até então, me permitindo voar com a imaginação àqueles paraísos mágicos que só a grande Arte sabe traduzir. O rock, a dança, a poesia compartilhados por aquela voz transcendental acima dos gêneros, confirmavam uma Vida onde o prazer e a alegria eram o cerne da própria existência humana. 

Passadas mais de quatro décadas desde o surgimento do trio musical formado também por João Ricardo e Gerson Conrad, a compreensão da magnitude da obra e da postura de Ney só parece aumentar com o tempo. Em contraste conflitante com a realidade que o Brasil hoje atravessa no plano político e moral, Ney representa, como nunca, a proposta de uma sociedade libertária, onde o respeito pelo meio ambiente se configura como prioridade inquestionável para que sejamos um outro lugar de convivência social, com real possibilidade de Felicidade. 

Em seus primeiros passos nos tablados, Ney atuava como ator que mal se insinuava para o canto. Como era também muito habilidoso para o artesanato, começou a ganhar algum dinheiro com ele; um talento que o levou naturalmente a criar seus próprios adereços cênicos, colhendo matéria-prima para tal no próprio habitat natural, em Mato Grosso. Desde sua adolescência, Ney se sentia muito íntimo da floresta que beirava os fundos de sua casa. “A Natureza me satisfazia plenamente. Eu não via a hora de chegar do colégio para me meter no meio daquela mata, sozinho com meus cachorros. Nunca tive medo de entrar na floresta e, ao contrário, me sentia protegido. Não conseguia encarar a Natureza como perigo, e aprendia mais, andando a tarde toda por ali, do que no tempo que ficava na escola. Comecei a observar os ciclos de vida e a ter uma percepção das estações e do que acontecia em cada época; sabia hora dos passarinhos chocarem e, muitas vezes, recoloquei nos ninhos filhotes que haviam caído. Conhecia as frutas de cada período do ano, os tipos de insetos, e como cada animal interagia com os outros (…) Não acreditava, como não acredito até hoje, que animal nenhum ataque se não for ameaçado.” (Depoimento a Denise Pires Vaz, autora de Ney Matogrosso – Um Cara meio Estranho, Rio Fundo Editora, 1992)“. 

Em toda a sua discografia, iniciada com os inesquecíveis Secos & Molhados em 1973, a Natureza aparece como fonte de inspiração maior de Ney. A brilhante performance que o artista mantém até hoje nos palcos e o personagem meio-homem, meio-bicho que ele amalgama tão bem em sua persona artística, brotaram justamente dessa consciência ecológica, feita também de traumas. Aos quinze anos, Ney assistiu incrédulo a uma matança de macacos no Mato Grosso, como treinamento de pontaria de adultos que tinham prazer em aniquilar. “O estado de choque em que fiquei me fez procurar uma maneira harmônica de conviver com a Natureza. Naquele mesmo dia, fui tratar de um gavião que também havia sido ferido na caçada, e ele me enfiou as unhas e quase rasgou minha mão. Compreendi ali que a tão falada agressividade dos animais muitas vezes derivava da agressividade humana, capaz de gerar uma matança a troco de nada”. 

Fotos: Luiz Fernando Borges da Fonseca/ Montagem: Felipe Tadeu

Minha lembrança mais antiga de Ney é o semblante do ser enigmático pintado, os dentes de onça na testa, de javali no pescoço, o couro de jacaré amarrado nas costas, a astúcia de uma fera sobre-humana, a voz e o canto de um artista da música popular que tem como mensagem o respeito às liberdades individuais como condição para o aprimoramento de nossas capacidades espirituais... Seu aprendizado sobre a Natureza, deus-mãe, aparece cristalizado no palco... “Parecia que aquilo que eu tinha puxado com a roupa trazia um outro ser. Não era eu. Mas dava passagem claramente para alguma coisa que aquela roupa colocava” (in Ney Matogrosso, Ousar Ser, de Bené Fonteles e fotos de Luiz Fernando Borges da Fonseca, Imprensa Oficial do Estado, Sesc São Paulo, 2002). 

E lá no fundo azul, da noite da floresta, a lua iluminou a dança, a roda, a festa”, dizia a canção “O Vira”, de João Ricardo e Lulli.

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.