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Legião Urbana – A mítica juventude, segundo Renato Russo e seus amigos

20/01/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

Foto: Felipe Tadeu 

Em 1986, naquele prédio de três andares incrustado na enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro, havia um pátio interno onde o sol batia sempre generoso. A impressão que se tinha, é que mesmo em dias de pancadas de chuva, típicas no alto verão da cidade, o astro soberano dos surfistas marcava sua presença. Dilúvio? Céu chapado de cinza chumbo? Era coisa do sol! Ele estava sempre ali, em Botafogo.

Nesse prédio funciona até hoje uma faculdade para formação de jornalistas, publicitários, relações públicas e interessados pelo setor de turismo, que era então um verdadeiro ímã para gente que sonhava se enveredar pelo egocêntrico mercado das mídias. Os estudantes que frequentavam a escola eram basicamente da classe média carioca. Muitos vinham de longe, como eu, da Zona Norte do Rio, pois farejavam certa modernidade naquele ambiente. Tinha também gente de outros estados, pois as mensalidades até permitiam a inclusão social daquela galera que, como eu, atravessava túneis para chegar perto da praia. A Facha (Faculdade Hélio Alonso)  tinha a virtude de contar com diversos professores do campo progressista, que atuavam na luta pela redemocratização da república num país que ainda era regido pela turma dos quartéis. Tinha professor de cabelo comprido, outros que haviam tido problemas com a Ditadura, além, é claro, de outros de perfil mais “redeglobo”. 

Pois bem: naquela escola havia uma estação de rádio que, na minha cabeça, era o espaço mais atraente do lugar. Afinal, eu já sabia qual era a minha no Jornalismo, quando pedi transferência do curso de Letras em 1991. Com 19 anos, eu estava convicto de que era músico e de que meu instrumento era a palavra escrita. Fazia meus poemas também e minhas primeiras letras de música.  Meu pai tinha uma loja de discos. Em pouco tempo, ali na faculdade, me juntei a um companheiro de sala que mais parecia Jesus Cristo para fazer meu primeiro programa radiofônico, o “Acorde – Música Instrumental”.  

Os programas da Rádio Facha eram produzidos pelos alunos. Eu era dos mais engajados e acabei criando um outro, que durou mais tempo do que o “Acorde”, chamado “Néctar dos Deuses”. Os programas iam ao ar pelas caixas de som que ficavam no pátio, na hora do recreio e no intervalo entre os turnos de estudo. Tinha muita gente bonita na Facha e tinha muita música linda que eu queria tocar ali naquela paróquia da Zona Sul. A faculdade, por sinal, ficava no terreno de uma igreja.

Um dia, eu estava de bobeira nos corredores abertos da faculdade, também conhecidos como “poleiros”, que davam para o tal pátio interno (como numa penitenciária), quando uma canção me pegou em cheio pelo texto que tinha – melancólico, mas de um alguém doido pra virar a mesa de sua vida. Belas guitarras e um canto fragilizado que comovia. Quem seriam aqueles caras? O locutor deu os créditos da música que me dizia que “temos todo o tempo do mundo”. O nome dela era “Tempo Perdido”, o autor tinha o nome de Renato Russo e a banda era a Legião Urbana.

Em 1986, um dos meus passatempos prediletos era ir ao Circo Voador. Eu já adorava rock brasileiro desde o tempo de Roberto Carlos, no final dos anos 60, mas meu parâmetro no gênero era o som da Rita Lee & Tutti-Frutti e O Terço. O pessoal da minha geração costumava dizer „vamos curtir um som“ quando queria escutar música, sabe?  Pra mim, o rock tinha que ter solos de guitarra, textos líricos e contestatórios e boas doses de ironia. Tinha certa desconfiança quando surgiram aquelas bandas de rock nos meados dos 80's. Na política, os conservadores conseguiram frear os milhões de brasileiros que foram às ruas exigir eleições diretas para presidente, fazendo Tancredo Neves virar salvação-de-lavoura. Migalhas. Na minha cidade, o maior festival de rock que estava para acontecer era produzido por um membro de uma família de políticos da Arena, o partido dos militares. Eu não fui ao primeiro Rock in Rio porque não estava a fim de ouvir música debaixo de um outdoor da Coca-Cola. Tinha visto Woodstock e Monterey Pop quinze vezes, não dava.

Mas a Legião Urbana era liderada por um poeta, que, além de escrever com muita sinceridade e sintonia com seu tempo, sabia dar ótimas entrevistas. Como era bom abrir o Caderno B do Jornal do Brasil e ver alguém dizendo outras palavras. Renato Russo merecia toda atenção, como Cazuza e Arnaldo Antunes. Eram caras que tinham a minha idade e representavam o pensamento mais luminoso da juventude de uma época tão complicada. Faziam um outro tipo de música que não era a maravilhosa “mpb”, mas se afinavam perfeitamente com ela na qualidade das canções, nas ambições por uma sociedade mais livre e igualitária. O Brasil poderia perfeitamente ser um país cosmopolita e preservar a Amazônia, tratando com toda dignidade os povos indígenas. 

O segundo álbum da Legião Urbana , o “Dois”, era o tal disco que um dos colegas da rádio da faculdade tocava regularmente lá na Facha. Depois de amar a “Tempo Perdido”, gostei também de outras coisas daquele quarteto formado por Dado Villa-Lobos (sobrinho-neto do seminal Heitor Villa-Lobos), Marcelo Bonfá e Renato Rocha. A música “Índios“, por exemplo, era arrebatadora. E fui seguindo, com o passar dos anos, a pista do Renato Manfredini Jr., curtindo Marina Lima cantando “Ainda é Cedo”. Também  tinha “Que País é Esse?”, ”Pais e Filhos” ou a Cássia Eller deslumbrante de “Música Urbana” e “Por Enquanto”.  Aliás, é do próprio Renato Russo a canção mais triste que Cássia interpretou: “Vento no Litoral”. Bela. 

Ambos já não estão mais aqui – nem ele, nem ela –, mas a contribuição que tanto Renato Russo e sua Legião Urbana quanto Cássia Eller prestaram a um Brasil mais leve, afirmativo nas questões da sexualidade e de todas as liberdades individuais foi definitiva – liberdades essas tão necessárias para a concretização da real Democracia em qualquer sociedade e da utopia do Planeta Terra como espaço de convivência pacífica entre nós mesmos, os humanos, bem como com os nossos manos de todo meio-ambiente... fauna, flora e arte.

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.