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Eckhard Ernst Kupfer e sua poesia-antídoto

17/08/2019 Vanete Santana-Dezmann Literatura e Leitura

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Eckhard Ernst Kupfer, no museu Raketenstation Hombroich. Neuss, maio de 2019. (Foto: Vanete Santana-Dezmann).

Passeando pela amplidão do museu Raketenstation Hombroich, em Neuss, entre a análise minuciosa dos fios dourados de uma tapeçaria japonesa ou da filigrana de um estojo de madeira, entre uma xícara de café e a contemplação da chuva lá fora, Eckhard Ernst Kupfer, diretor do Instituto Martius-Staden (São Paulo), em tom ameno e, por vezes, emocionado, falou um pouco sobre seu livro de poemas recém-lançado “Sobre viver / Über leben” (Editora Patuá, 2019).

Abaixo, você confere suas confissões e um pouquinho do livro sob a perspectiva de sua interlocutora, Vanete Santana-Dezmann.

 

Convite à vida

“Foi a tradução que me salvou depois do meu desastre do petróleo. Em vez de recorrer ao suicídio, ao álcool ou a qualquer estupefaciente recorri ao vício de traduzir, e traduzi tão brutalmente que me acusaram lá fora de apenas assinar as traduções. Mas era o meio de me salvar. Hoje me sinto perfeitamente curado, – e por isso abandono o remédio." (São Paulo, 05/03/1945, Lobato, 1959a, p. 366-36.). Esta confissão de Monteiro Lobato sobre suas atividades no período em que esteve preso (de março a junho de 1941), registrada em carta enviada a seu amigo Carlos Rangel, testemunha o poder redentor da escrita – de textos próprios ou de outros, como no caso da tradução.

Embora nem sempre este poder redentor tenha se concretizado, conforme demonstram os exemplos de Virginia Woolf, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e tantos outros, o fato é que ele funciona na maioria das vezes. Prova disso é a infinidade de escritores mortos por morte natural, acidentes ou doenças. 

Quando se acredita que após nossa fugaz passagem por este mundo nada mais há, manter-se preso à vida, a despeito das adversidades, é um desafio que a escrita, especialmente de poesia – dado seu caráter subjetivo – ajuda a enfrentar. É disto que Eckhard Ernst Kupfer fala na introdução a seu mais recente livro, seu primeiro de poesia, “Sobre viver / Über leben”.

Filho de um soldado do Exército de Hitler, com quem teve pouco contato na infância devido aos constantes deslocamentos  da II Guerra, Eckhard se tornou jornalista, estudou literatura e filosofia, profissionalizou-se em comércio exterior e acabou por se radicar no Brasil, onde vive há mais de quarenta anos e é diretor do Instituto Martius-Staden, uma das mais sólidas instituições dedicadas ao intercâmbio cultural entre o Brasil e a Alemanha, sediada em São Paulo, junto ao Colégio Visconde de Porto Seguro.

“Sobre viver / Über leben” traz poemas em versos livres – como a vida deve ser – sobre a tristeza, a esperança e sua perda, mas termina otimista, falando de juventude, amor, confiança e quebra de tabus e preconceitos.

No poema “Innerer Krieg / A guerra interior”, por exemplo, que integra a primeira parte do livro, encontramos a inquietação diante da guerra, que marcaria o autor interna e externamente. O poema se encerra com a paz inquietante:

Der Krieg ist beendet / A guerra acabou

folgt der unheimliche Frieden / segue-se a inquietante paz

in dir / dentro de você

ein grausames Spiel / um jogo cruel

 

Em “Diese Stadt / Esta cidade”, poema inspirado por São Paulo e integrante da segunda parte, transparece um pouco da desesperança diante de um país do futuro para o qual o futuro nunca chega: 

Diese Stadt / Esta cidade...

Fände sie toll / que eu acharia incrível

Wenn ich sie sehe / se a visse 

Im Netz, in der TV / na internet ou na tv

Aber nie aus der Nähe / mas nunca de perto

 

O poema metalinguístico “Vom Schreiben / Da escrita”, integrante da terceira parte, compara a leveza de escrever em tempos pós-modernos, em uma nova língua – o Português – com o rigor da escrita – e da educação – no pós-guerra alemão: 

Vorbei die Angst ich zu verschreiben / Passou o medo de errar

 der PC korrigiert mich sofort / o PC me corrige na hora

 ich warte auf den Schlag / aguardo a cacetada

der nicht kommt / que não vem

nütze die Freiheit aus / desfruto a liberdade 

und spiele wie ein Pianist / de tocar como um pianista

 

Finalmente, na última parte, a coragem de tocar na ferida sempre pronta a verter sangue:

Er war mein vater / Ele era meu pai

stand plötzlich da / de repente estava ali

es war Frühling / era primavera

ich gerade sieben Jahr / eu tinha apenas sete anos

kannte ihn nur von Fotos / só o conhecia de fotos

in Uniform, Soldatenkappe / em uniforme e quepe militar

das Hakenkreuz / a suástica

keine Attrappe / nua e crua

wir lernten uns kennen / só então nos conhecemos

 

A capa reproduz um registro da videoinstalação das artistas Néle Azevedo e Vanessa Ramos-Velasquez baseada em “O mito de Sísifo”, de Albert Camus, e exposta no Espaço Vitrine em São Paulo em 2016.

Na mitologia grega, Sísifo, um sábio, ao chegar ao reino dos mortos, o Hades, recebeu um castigo por sua rebeldia: foi condenado, por toda a eternidade, a empurrar uma grande pedra de mármore até o topo de uma montanha, porém, sempre que estava perto de alcançar seu objetivo, a pedra rolava para trás até o ponto de partida. Por isso, toda tarefa que envolve esforços inúteis é considerada um “Trabalho de Sísifo”. É esta tarefa de Sísifo – encontrar sentido para a vida e esquecer o passado – que Eckhard Ernst Kupfer se dedica, escrevendo poemas. Mais do que pela coragem para se desnudar, seu livro é marcado pela coragem para viver.

Fica aqui um convite à superação dos obstáculos e experiências negativas, um convite à vida e – por que não? – à leitura de “Sobre viver / Über leben” e à escrita de suas dores e alegrias. 

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Vanete Santana-Dezmann

Profissional da área de ensino e pesquisa com 25 anos de experiência. Tem licenciatura e bacharelado em Letras, e mestrado e doutorado em Teorias de Tradução, pela UNICAMP, com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução pela USP, com estágio de pesquisa no Museu Goethe de Düsseldorf. De seu currículo fazem parte dezenas de artigos científicos, livros e palestras. Atualmente, é professora de Tradução na Universidade Johannes Gutenberg, na Alemanha.