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ADRIANA CALCANHOTTO - O TEMPO DO ETERNO AMADURECIMENTO

05/04/2020 Felipe Tadeu Arte e Música

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Adriana Calcanhotto em cena - Frankfurt, novembro de 2019.  (Foto: Felipe Tadeu).    

 

 

Camélia caiu na vida

porque ainda não existia a pílula

Pagou caro aquele amor

feito com dificuldade

detrás do jirau de roupas

em pé junto à cerca

enquanto a família dormia

(o mesmo gosto de hortelã

das pastilhas de aniversário).

 

(Ferreira Gullar in "Poema Sujo", 

ed. Civilização Brasileira, 1979) 

                                                      

Qual o segredo que Adriana Calcanhotto, cantora e compositora nascida na cidade de Porto Alegre, RS, em 1965, tem para enlaçar seu fiel público desde a gravação de seu primeiro álbum, arriscadamente batizado de “Enguiço”, de 1990? Mesmo sendo uma artista de popularidade inquestionável, o trabalho da gaúcha não é o que se poderia se considerar como de “fácil consumo”. O conceituado letrista, escritor e jornalista Carlos Rennó, por exemplo, ao analisar um dos discos de Adriana, foi duro nas palavras: “‘Maritmo’ não é obra de alguém dotado de grande musicalidade, mas capaz de compensar essa desvantagem com percepção estética.”. Será? 

Uma característica de Adriana que incomodava no passado era o fato de ela abusar regularmente de citações do tropicalista Caetano Veloso e de nomes a ele ligados, como Hélio Oiticica e Waly Salomão. Será que ela era tão insegura, a ponto de necessitar das associações nem sempre sutis ao genial baiano para ser aceita na mídia como uma pessoa culta? 

Adriana Calcanhotto é ambiciosa e isso para ela foi uma tremenda virtude. É muito interessante perceber em seu trajeto o quanto ela evolui com o passar do tempo. Treze discos depois daquele enguiço que não se confirmou, ela se tornou uma artista única: suas letras têm profunda densidade poética e seu canto tem total afinidade com as belas melodias que consegue criar, cativantes por serem tão diretas, indo sem extravio ao coração de seu público. E mais: sua frondosa criatividade se espraia também pela vídeo-arte e como showwoman em seus concertos pelo mundo. Performática, seus clipes e sua postura no tablado se aperfeiçoaram muito, dando espaço às Artes Plásticas, com a Poesia sempre na intenção maior.

“Eu gosto de dar a cara a tapa, é natural pra mim”, afirmava ela ao jornalista Bráulio Neto em 1998. Sobre ela, Tárik de Souza mandou em 2002 nas páginas do Jornal do Brasil: “Cutuca com rima curta a fera da vanguarda, em pleno império do banal.”.

No espetáculo que ela e sua banda realizaram em novembro último no Mousonturm, em Frankfurt, Alemanha, a artista não deixou de incorporar ao repertório que apresentava “Margem”, seu álbum mais recente, canções de sua faceta infanto-juvenil assinadas por “Adriana Partimpim”, heterônimo de infância de quem tem mãe bailarina e pai e irmão músicos. Sempre que as pessoas perguntavam à guria o seu nome, ela dizia “Adriana Partimpim”, talvez por causa do pó de pirlimpimpim. A brincadeira séria da vida adulta acabou rendendo três discos, o primeiro em 2004, seguido por “Dois”, em 2009, e “Tlês”, de 2012. 

 

Ingresso para o concerto da artista (Imagem: Felipe Tadeu).

 

O confinamento que o mundo atravessa por conta da pandemia do vírus corona foi devidamente explorado pela versátil cidadã do Rio de Janeiro, que, no penúltimo final-de-semana de março, atuou ao vivo, da própria casa, em dois “pocket-shows” para a internet, - num dia como Calcanhotto, no outro como Partimpim. 

A habilidosa cantora e compositora, que conseguiu emplacar diversos hits em trilhas-sonoras de novelas, nunca fez distinção entre vanguarda artística, música brega e funk carioca, por exemplo. Encarou a responsabilidade de gravar disco em que mergulha no cancioneiro do conterrâneo Lupicínio Rodrigues, o “Loucura”, de 2015; publicou dois livros em Portugal (posteriormente, no país natal) - o “Algumas Letras”, de 200,3 e “Saga Lusa”, cinco anos depois, ambos pela Quasi Edições. Lançou, também no Brasil, uma “Antologia Ilustrada da Poesia Brasileira para Crianças de Qualquer Idade“, pela Casa da Palavra em 2013, além do “Haicai do Brasil”, em 2014, sob a tutela da Edições de Janeiro. Eucanaã Ferraz organizou sobre ela, em 2016, “Pra Que Serve Uma Canção como Essa? - Letras de Adriana Calcanhotto” para a Bazar do Tempo.  

“Margem”, o mais novo álbum, fecha uma trilogia iniciada em 1998 com “Maritmo”,  seguido pelo excelente “Maré”, de 2008. Motivação do trabalho mais recente? “Por inércia. Pelo fato de ter ouvido, cogitado e cantado tantas canções que acabaram não entrando nem no álbum e nem depois nos shows da turnê de lançamento, canções que não entraram nos projetos mas não saíram de mim, que de alguma maneira foram ficando como possibilidades para o terceiro.  O terceiro confunde-se um pouco com o segundo nesse sentido. Os oceanos não são mais os de vinte anos atrás e essa tragédia estava há muito anunciada”, afirmou Adriana Calcanhotto em texto no seu site.

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.