Blog BR+

Adoniran Barbosa – o samba de um sábio das ruas

06/08/2019 Felipe Tadeu Arte e Música

#

Capa de um dos discos póstumos do artista. Acervo MPB.

Houve quem o comparasse com Charles Chaplin, aquele que fazia as multidões morrerem de rir nas salas de cinema com histórias hilariantes, mas que travavam o coração da gente pela tristeza nelas oculta. Mário Lago, também exímio praticante das artes cênicas, e que também compunha canções, viu no sambista de nome engraçado, que mais parecia nome de remédio, um outro talento indiscutível: “Adoniran Barbosa teve grande importância na música popular, pois era um perfeito repórter. O repórter dos bairros pobres de São Paulo.” 

A figura cativante daquele senhor de dialeto muito próprio nascido em Valinhos, perto de Campinas, meio italianado, meio caipira, que vivia de paletó, chapéu, gravata borboleta e até cachecol (estamos falando de um cidadão do Brasil paulistano), era de nossos artistas mais polivalentes. Nato, ou melhor Rubinato. Porque o nome de certidão é, na verdade, João Rubinato. Se tivesse nascido na Alemanha, poderia ter se chamado Karl Valentin, por exemplo, mas a persona artística daquele senhorzinho de bigode se impôs mesmo foi como Adoniran. Pois bem, o sujeito não precisava cantar seus próprios sambas para fazer as pessoas abrirem logo um sorriso, carentes de uma boa gargalhada. Se deixassem aquele senhor abrir a boca então, Deus nos acuda! Uma vez, dando uma entrevista, contou um pouco sobre sua origem pobre, como um dos sete filhos de um casal de imigrantes italianos: “As veis a gente toma banho em bacia e se enxuga com a toalha do vento. E quando não tem água, a gente se enxuga antes de tomá banho.” 

A carreira dos sonhos do autor de sambas tatuados na alma de tantos brasileiros, como “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “Apaga o Fogo, Mané” e “Samba do Arnesto”, era ser ator de teatro. Mas foi no rádio que Adoniran conseguiu entrar pela porta da frente da popularidade. Depois de ter feito um pouco de tudo nessa vida, de ter ajudado o pai no carregamento de vagões da São Paulo Railways (imagine Adoniran falando o nome da firma...), de ser faxineiro de fábrica de tecidos, encanador, entregador de marmitas (como Tim Maia) e garçom, Adoniran foi aos 23 anos cantar um precioso samba de Noel Rosa, “Filosofia”, no programa de calouros de Jorge Amaral, na Rádio Cruzeiro do Sul. Será que ele teria tanto azar como na experiência anterior na Rádio Fontoura? Não. Levou a composição até o fim, sem tomar o gongo, cantando com muita identificação a letra do poeta carioca da Vila Isabel, que tratava da sociedade que discriminava os mais necessitados negando-lhes chances na vida. Adoniran passou na prova e plantou, ali no estúdio da emissora, a primeira semente que vingaria para a entrada no mundo das artes. “... Um sábado, o homem do gongo devia estar dormindo, consegui chegar ao fim”, explicou Adoniran depois do êxito. 

O desempenho nos microfones levou o produtor radiofônico Paraguassu a convidá-lo para uma atuação como “canário” em um programa de quinze minutos, onde pôde apresentar composições do próprio punho como “Minha Vida me Consome”, feita em parceria com Pedrinho Romano e Verídico (!) e “Teu Orgulho Acabou” (com Viriato dos Santos). A comicidade de seu estilo natural de ser, de cantar batucando em caixinha de fósforos pelos botecos do bairro do Bixiga e nas redondezas na “Terra da Garoa”, chamaram a atenção dos radialistas, que perceberam nele um refinado humorista. (É bom lembrar que no mundo dos anos 30 a televisão era o rádio). Acabou fincando os pés em estações paulistas, trabalhando por mais de trinta anos para a Rádio Record, onde tinha carteira assinada, criando uma infinitude de tipos humorísticos nos programas por onde passava, dentre eles verdadeiras sumidades populares como Charutinho, Zé Cunversa, Barbosinha-Mal-Educado-da-Silva e Jean Rubinet. O destino cristalizara nele uma incrível sensibilidade, como ele mesmo dizia, de ser “um osservatore dos tipos de rua”, de ser um cidadão de São Paulo, que apostava tudo no “progréssio”, se esquecendo dos seres que nela viviam. Por flanar pelas ruas da cidade como poeta-repórter, Adoniran Barbosa escreveu seus memoráveis sambinhas, repletos de palavras “erradas” – o que era uma grande característica dele – usando autênticas recriações do português real praticado aos relentos da urbe. Essa cidade que, como diria mais tarde Chico Science, “não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe, o debaixo desce”. 

 

As maravilhas dos Demônios da Garoa 

Quem está na chuva, é pra se molhar! Capa de um dos discos dos Demônios.  Acervo MPB.

Ainda que o trabalho como comediante no rádio viesse a se tornar seu principal meio de sobrevivência, Adoniran Barbosa nunca deixou de compor. Estreou nas emissoras em 1933 e, dois anos depois, conquistava o primeiro lugar em um concurso da prefeitura com a marchinha carnavalesca “Dona Boa”, feita com o parceiro J. Aimberê. Faturou 500 mil réis pela façanha, prontamente aproveitados. Gastou tudo em birita e em maços de cigarro Yolanda: “Cerveja vai, cerveja vem, e se eu não me agacho, eu fico sem dinheiro.” Prêmio para um compositor que gosta de avacalhar o idioma nacional? “Pra escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto”, sentenciou o gênio. Em 1955, em um dos acontecimentos mais fundamentais de sua vida bem vivida, de muito trabalho e boêmia intensas, o popular ator de rádio que também passara a fazer cinema (consta em seu repertório de clássicos na “sétima arte” a película “A Carrocinha”, com Mazaroppi) conhece o exímio grupo vocal Os Demônios da Garoa nos sets de filmagem de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, em que Adoniran atuara. O longa-metragem, que em 1953 venceria o badalado Festival de Cannes, abiscoitando os prêmios de melhor filme de aventura e de melhor trilha-sonora, deixou o sambista “do cangaço” eufórico: “Aquela da estreia de O Cangaceiro em São Paulo... Fiquei tão contente, que se encontrasse Lampião na rua eu me acendia com ele.” 

Mas nem o sucesso na França iria embaçar a chegada dos Demônios na rotina de compositor de Adoniran. Com eles, o sambista do Bixiga que conquistara os carnavais paulistas de 1951 e 52 com “Malvina” e “Joga a Chave”, iria chegar ao Olimpo da música popular brasileira, quando eles gravaram “Saudosa Maloca”, que foi sucesso retumbante no Brasil e já tinha sido gravada pelo seu autor, mas sem muita repercussão. Com os amigos nada-satânicos, emplacaria “Trem das Onze” em 1964, sua melhor composição de todos os tempos. Um samba que com certeza está no mesmo nível de relevância cultural para o Brasil como “Carinhoso”, de Pixinguinha, “O Samba da Minha Terra”, de Dorival Caymmi, ou “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Quando “Trem das Onze” chegou, Adoniran Barbosa tinha 54 anos. O belo samba chegou a ser gravado no Japão e também na Itália, onde recebeu outro título, de “Filho Único”. Com os mesmos Demônios da Garoa, os sambas cheios de humor do mestre Adoniran iriam sacudir o “Brasil Pandeiro”, com “Iracema”, “Prova de Carinho” (com Hervê Cordovil), “Mulher, Patrão e Cachaça” (feito com um dos amigos mais importantes, Oswaldo Moles), “Um Samba no Bixiga”, “Luz da Light”... 

Nos 51 anos de carreira musical, Adoniran Barbosa gravou apenas três LPs, de 1974 a 1980. Depois de sua morte, em 23 de novembro de 1982, aos 72 anos, foram lançados outros discos póstumos, como o “Documento Inédito” e o “Ao Vivo”, registro de seu último show com o grupo Talismã. Emplacou em um dueto formidável com Elis Regina*  em "Tiro ao Álvaro" (parceria com Oswaldo Moles) no final da década de 1970, compôs curiosamente com a escritora Hilda Hilst, com Vinícius de Moraes, o cachorrinho Peteleco, Rolando Boldrin e Benito de Paula, e deixou esse planeta aqui sabendo mesmo das coisas. “É como dizia a nedota (anedota): muita gente trabaia... e os otro véve.” “O diabo só dá cachimbo pra quem sofre de asma.” “Eu já falei que nem num é ruim, nem num é sufrive, nem num é mau. É peço!” 

Adoniran Barbosa e seu parceirinho de quatro pernas, o amigo-cão Peteleco. Acervo MPB.

“Cada sambinha meu tem uma rua de São Paulo, um bairro.” É disso que são feitos os sambas de Adoniran Barbosa. Esses que a gente canta, assobia, e sente aperto no coração. 

 

Vídeo: * Um encontro bonito da Pimentinha com o Charutinho.

Indicação de leitura: “Adoniran Barbosa”, de Valter Krausche, pela coleção Encanto Radical, da Brasiliense, e “Adoniran – Um Sambista Diferente”, de Bruno Gomes, que saiu pela Martins Fontes/Funarte. 

#
Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.