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"Luto é verbo para mim" – Bia Hetzel

06/11/2019 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras

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 Imagem: Acervo partiicular Bia Hetzel

Bia Hetzel começou a vida profissional como fotógrafa. Apaixonada pela natureza, tornou-se ambientalista no início dos anos 90, quando foi chamada para registrar a vida das baleias e golfinhos na costa brasileira. Não foi destino, foi intenção. Quando foi professora de um curso de fotografia no Rio de Janeiro, anunciou que seu sonho era fotografar a vida marinha. Recebeu um convite para ser voluntária no primeiro projeto científico sobre as baleias-jubartes no Brasil e contribuir com a divulgação científica e levantamento das espécies e das ameaças ambientais. 

A oportunidade transformou sua vida. Além dos registros fotográficos para inúmeros estudos e extensa literatura científica, o convívio com as baleias e golfinhos – com quem parece ter uma relação quase familiar – a transformou em escritora infantil. Seu primeiro livro é sobre Rosalina, uma baleia-jubarte que acompanhou. De forma lúdica, foi pioneira ao sensibilizar crianças e adultos sobre os impactos da ação do homem na vida marinha e espalhar a importância da preservação. Como ela mesma diz, “minha baleia ganhou um Jabuti” – maior prêmio da literatura no país. E, sem querer, Bia entrou para o mundo da literatura. 

De lá para cá, foram inúmeros registros fotográficos, livros infantis e prêmios. Junto com a amiga Silvia Negreiros, abriu a Editora Manati, que durante quase duas décadas, publicou diversos títulos e histórias que influenciaram milhares de crianças brasileiras. Até hoje, Bia se emociona ao encontrar pessoas que revelam como Rosalina e outros de seus livros repercutiram em suas vidas.

Com a crise, Bia Hetzel fechou a editora. Perguntada o que faria a partir de então, disse: “eu vou para a praia”. Sua ideia era fazer um ano sabático, dedicado ao contato com a natureza e ao trabalho voluntário de fotografar baleias e golfinhos. Não via a hora de reencontrar Noeli, uma baleia-de-bryde, que acompanha há vários verões.  E se engajou no projeto Baleias e Golfinhos do Rio de Janeiro.

Mal sabia que seus registros a levariam à outra virada, dessa vez como cineasta. Luneta é o mais recente projeto, em parceria com Duda Carvalho. O documentário mistura belas e surpreendentes imagens da costa do Rio de Janeiro, embaladas por uma trilha sonora de alta qualidade. Não bastasse, Luneta promove uma experiência sensorial e já teve sua qualidade reconhecida, ao ser selecionado para vários festivais de cinema do mundo. 

Neste momento conturbado do país, escreveu, recentemente, em sua página nas redes sociais uma frase que viralizou: “Luto para mim é verbo”. Para ela, seu trabalho é contribuir para a reduzir o desconhecimento sobre a importância da preservação da vida marinha e como isso tem relação direta com a vida de cada um. 

Em entrevista ao blog BRmais, Bia conta mais sobre seu percurso e, também, sobre o novo projeto. 

 

UMA TRAJETÓRIA NADA CONVENCIONAL 

Bia, conte-nos um pouco de você. 

Eu sou fotógrafa (não sou bióloga), documentarista, escritora e virei cineasta no ano passado. Não era algo que estava nos meus planos. Aconteceu. Sou uma naturalista e colaboro para projetos de pesquisa. Tenho trabalhos científicos publicados, mas o centro do meu interesse sempre foi a divulgação científica e o levantamento das espécies e das ameaças ao meio ambiente. Trabalho como voluntária com a Liliane Lodi, a bióloga responsável pelos principais projetos sobre baleias e golfinhos no país. Há décadas, ela faz um trabalho chamado Projeto Baleias e Golfinhos do Rio de Janeiro. É uma pesquisa de longo prazo, que, por vezes, é encampada pelo Projeto Ilhas do Rio. Mas quando o Ilhas é interrompido, o Projeto Baleias e Golfinhos continua. Ele não pode ser interrompido.

Estes projetos precisam de acompanhamento no longo prazo?

Sim, precisam. Há baleias que acompanhamos há décadas. Então, interromper o programa é um problema.  

Qual a satisfação que você encontra neste trabalho?

Ver coisas que as pessoas normalmente não enxergam – apesar de estarem ali, ao seu lado delas – e poder abrir os olhos delas para que vejam é a satisfação do meu trabalho. É muito compensador e surpreendente participar destes projetos. Mesmo com toda a degradação ambiental da Baía de Guanabara, já vi coisas incríveis, como uma baleia-de-bryde recém-nascida na praia de Copacabana – foi até capa do jornal espanhol El País. 

Seu trabalho é fazer com que as pessoas enxerguem o meio ambiente do qual elas fazem parte. Falemos disso, então? 

Sim. O filme Luneta, para o qual fui convidada a participar pelo Duda Carvalho, é sobre a natureza do Rio de Janeiro e um bom exemplo. 

 Imagem: Reprodução/ Divulgação (Fonte: trecho trailer filme - Copyright 2018 Studio The)

 

Como surgiu Luneta?

Eis uma história engraçada. O Duda Carvalho era fotógrafo de moda. Eu, fotógrafa do meio ambiente e escritora. Fomos vizinhos de trabalho por mais de vinte anos. Ele tinha um estúdio ao lado da minha editora, a Manatí. Com o país em crise, fechei a editora e perdemos o contato. Decidi ir para a praia ou para a floresta. Queria fazer como o Jung que, na época da guerra, se retirou em uma cabana com livros emprestados das editoras, até os tempos difíceis passarem. Tirei um ano para ler tudo o que eu queria, curtir a natureza, a praia e me nutrir de coisas positivas. Nestas andanças, reencontrei o Duda que me disse estar fazendo cinema e tinha visto alguns vídeos e fotos na minha conta do Instagram (do acervo de imagens captadas para o Projeto Baleias e Golfinhos do Rio de Janeiro). Ele me convidou a participar e, como não havia patrocínio, aproveitamos para fazer o que a gente gosta. Foi aí que surgiu o Luneta. E, te digo, foi o ano mais divertido da minha vida.  

Que outros momentos da sua vida você considera importantes? 

Nossa, tenho muitos momentos incríveis! Difícil escolher: o trabalho como voluntária, o trabalho na editora com educação, nas escolas com as crianças... Mas acredito que o momento da primeira virada foi quando eu fiz o curso de fotografia na PUC do Rio de Janeiro e me tornei professora. Ele, o curso, me catapultou para algo que nem imaginava existir: a pesquisa científica com baleias e golfinhos. Eu me apresentava como fotógrafa de publicidade, mas sempre comentava que gostava mesmo era de fotografar natureza e que, se pudesse, trabalharia com baleias e golfinhos. Até que uma amiga falou que um biólogo de um projeto com baleias na Bahia precisava de fotógrafo. E foi assim que tudo começou: eu fui a fotógrafa estagiária do Projeto Baleia Jubarte, desde seu primeiro ano. 

Outro momento foi quando escrevi os dois primeiros livros. Criei o guia de campo pioneiro sobre as baleias e golfinhos do Brasil. Fiz com a Liliane, logo depois da Eco 92, em 1994. Eu era muito jovem. E lembro que, na época, fui até parar em uma  entrevista no programa do Jô Soares. Teve muita mídia. Um sucesso, principalmente entre crianças.  Foi aí que escrevi o livro Rosalina, minha primeira obra para crianças, que contava a história de uma baleia-jubarte, um êxito de público e crítica. Um dia, recebi um telefonema me parabenizando, pois minha baleia havia ganhado um Jabuti, o maior prêmio literário no Brasil. Cheguei a pensar que era brincadeira: nunca podia imaginar que tinha mesmo ganho o maior prêmio da literatura brasileira. Estes livros fizeram parte da formação de várias pessoas. Há biólogos, com quem trabalho nos projetos, hoje, que contam como estes livros influenciaram suas vidas. 

 

OS DOIS LADOS DA VIDA DE AMBIENTALISTA 

Qual a faceta adversa, espinhosa deste trabalho emocionante: o mau tempo, por exemplo? 

É muito emocionante, sim. O trabalho com baleias e golfinhos – esta “fofo fauna” –  parece fácil, mas é bastante árduo. Eu até gosto do mau tempo. O mais difícil é fazer fotos dos animais sufocados com plásticos na Baía de Guanabara. Estou há 30 anos no mar e, muitas vezes, sou testemunha da morte, da degradação, dia após dia, ver os bichos altamente contaminados... isso é o pior. Muita gente acredita que estudamos os golfinhos apenas por empatia com a espécie. Não é só isso: eles são bioindicadores que servem para verificar o impacto de diferentes substâncias na saúde humana. Como são mamíferos, o que acontece a eles pode nos acontecer, também. 

E a Rosalina existiu mesmo?

Sim, vive até hoje. E sua expectativa de vida é a mesma que a minha. Rosalina foi a primeira baleia que se aproximou do nosso barco, em Abrolhos – elas tinham medo da gente e a gente tinha medo delas. Naquela época, quando iniciamos a pesquisa por lá, a pesca comercial havia sido proibida no Brasil, poucos anos antes e a população de baleias era muito menor do que atualmente. Hoje, é diferente. A população cresceu e elas estão chegando cada vez mais perto. Existe uma relação de confiança entre animal e humano. Eles percebem que podem chegar perto e a aproximação tem se tornado um fenômeno mundial. 

 

DO MAR AOS LIVROS

A editora veio depois de Rosalina. Como foi?

Rosalina vendeu mais de 100 mil exemplares e me levou para o Brasil todo. Fui convidada para ir às escolas e foi aí que me agarrei à causa da educação. Eu via que, no Brasil, a pesquisa ambiental dificilmente teria recursos suficientes para bancar fotógrafos – como é o meu caso. Mas, naquela época, viver de livros ainda era possível. Foi então que criei a editora Manatí. Quando começou, os livros infantis publicados no país eram, em sua maioria, graficamente limitados – poucas cores e número limitado de páginas por causa dos custos. Mas eu sempre prezo pelo design, pelo acabamento, e queria editar livros com esta qualidade. Encontrei a Silvia, que é designer, que topou abrir uma editora independente comigo. Já contava com meus livros, era conhecida nas escolas e havia os livros da minha mãe, também escritora.   

E o vínculo com a educação?

Durante vinte anos, este foi o padrão da minha vida. Especialmente, a alfabetização para fazer do Brasil um país de leitores. É impressionante o número de analfabetos funcionais: só um terço das pessoas que leem é capaz de compreender e interpretar textos simples, como uma bula de remédio. Nas escolas públicas, na alfabetização de jovens e adultos e programas de formação de leitores como o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), é comum encontrar analfabetos funcionais. Inclusive iniciando formação superior em universidades. Daí, a importância de projetos como este que, infelizmente, vêm diminuindo.

Como a experiência com educação se inscreve em seus livros e vice-versa?

Por exemplo, uma senhorinha do interior da Bahia, contadora de histórias, que participava de um destes programas de leitura, leu o meu livro O Menino e o Tempo, com pouquíssimo texto e letras grandes, que é de filosofia para criança e fala sobre o conceito de tempo. E isso mudou sua vida. Ela me disse “minha filha, estes seus livros, que a gente consegue enxergar e entender”. O bom livro para a criança é aquele que comove a todos. Ele precisa ser um livro que a criança consiga ler, que ela tenha a capacidade de entender a mensagem, mas ele precisa envolver a todos. Ele tem que provocar, não pode subestimar o entendimento de quem lê, nem banalizar o assunto. Por isso, um livro com ilustração, letras grandes, espaçamento grande, com uma leitura fácil e boa também contribui para estimular a educação de crianças e adultos. 

O conceito de usabilidade, tão na moda hoje para aplicativos e sites, sempre existiu para os livros?

Com certeza! Em contato com o analfabetismo funcional, passei a fazer livros não apenas voltados para o universo infantil, mas levantando questões mais profundas. O Dono da Verdade, um livro infantojuvenil – até agora o mais premiado – fala justamente do mal do fanatismo. É o meu livro com a temática mais atual, se pensarmos no mundo, hoje. Lembrando o que falava sempre o escritor Bartolomeu, com quem trabalhei no PROLER: “eu tenho pavor de quem é muito fã de alguma coisa, pois vira fanático”. 

Vocês iam a várias escolas?

Não, não era só às escolas. Pela editora íamos para as escolas onde os livros eram adotados. Já no PROLER, íamos para onde desse. Eles montavam a tenda onde era necessário e chamavam as pessoas.

 

PAIXÃO FAZ A DIFERENÇA

Muitos dos seus trabalhos relatam uma experiência, uma paixão ou uma e outra. Como isto funciona na hora de escrever um livro ou produzir um filme?  

Tudo em que eu entrei de cabeça deu certo. O filme Luneta foi movido à paixão. Não consigo ver a criação artística sem comprometimento. É quando fazemos o nosso melhor. Foi assim, também, com a bibliografia do Santos Dumont para jovens. A Infraero e a Embraer (patrocinadoras de um projeto que eu fazia sobre a Baía de Guanabara) me pediram para escrever a história do aviador (que sempre foi uma das minhas paixões), pois não tinha nada bacana para adolescente sobre ele. Aceitei na hora.

Você atua em duas frentes de peso e importância: meio ambiente e educação. A seu ver, o que melhorou e o que regrediu nestes últimos anos?

Infelizmente tem piorado muito. Semana passada, eu estava no mar com a Débora Pires – defensora da vida marinha e quem começou todos os projetos sobre corais – e falávamos que nosso trabalho é igual àquele jogo em que se lançam os dados e aparece “volte 20 casas”. O clima geral está mais hostil que nunca. De repente, tudo com que eu trabalhei até agora se tornou o inimigo número um, em apenas dois anos. Tem-se raiva de quem sabe, raiva da cultura, raiva de quem quer educar. A área ambiental e a preservação dos nossos recursos naturais são vistas, por estas pessoas extremamente ignorantes e agressivas, como uma pedra no sapato.

Qual o sentimento que permanece em alguém movido por paixões? 

Não tem outra palavra: é o de opressão. Estamos oprimidos e reprimidos e precisamos nos expressar para não deprimir. Para mim, o caminho é a sensibilização pela arte, pois não adianta mais falar para as pessoas que o saco plástico está matando – elas já sabem. Não é a informação que move, é a arte que comove. E esta é a proposta do filme documentário Luneta: falar de forma sensorial sobre o ambiente em que vivemos, promovendo a experiência de estar ligado a ele. Eu quero que, ao assisti-lo, a pessoa sinta o que a gente sente e se comova.  

Que legado você crê estar deixando, tanto na parte ambiental como na parte educacional?

Se eu conseguir passar esta paixão capaz de despertar a compaixão nas pessoas, este será o meu legado, pois é só o que permite que elas se movam. Aprendi isso com a Rosalina. Sei que mais de uma centena de pessoas se tornaram biólogos por causa do livro. Outro dia, indo para o barco logo cedinho, ao pegar o Uber, o motorista perguntou se eu trabalhava no mar. Disse que sim, com pesquisas sobre baleias e golfinhos, e ele começou a fazer perguntas das mais pertinentes. Impressionada, disse que ele parecia muito ligado no assunto e ele me confirmou que, sim, desde pequeno, pois, no colégio, tinha lido um livro que mudou sua vida. E o livro era Rosalina. Fiquei emocionada e perguntei se ele se lembrava do nome de quem escreveu o livro. Ele disse que não e então me apresentei: meu nome é Bia Hetzel. Ele não conseguia acreditar! 

Nossa última pergunta: que característica da cultura brasileira mais a representa?

Esta criatividade, esta alegria. A espontaneidade que se transforma em entusiasmo.  A gente se vira nos trinta. Nossa diversidade ajuda muito. Eu sou uma brasileira das mais apaixonadas pelo país, por sua cultura. Certa vez, havia várias pessoas colocando seu sentimento de luto nas redes sociais. Então, escrevi uma frase que viralizou nas redes: “Luto é verbo para mim”. É isso: a gente precisa lutar, e eu acredito que, no miudinho, pelas beiradinhas, é possível. Eu sempre digo: falem dos seus desejos e seus sonhos, porque não tem outra maneira de as coisas acontecerem se o mundo não souber o que você quer. Meu sonho se tornou o meu trabalho. E meu trabalho tem sido mostrar o que o Brasil tem de maravilhoso!

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Beatriz Mello

Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.